terça-feira, 7 de julho de 2009

Capítulo 11 - "Lá e de volta outra vez"

Tinha raiva. De si e do mundo. Principalmente dele. Dele não, dele era impossível ter raiva. Em lugar desta ficara a mágoa. Uma ferida fixa em seu coração. Demorara tanto. Esperara tanto. Por isso. Por essa porcaria. Por todo o desprezo. Não, ele merecia valor. Ele era Lean, não qualquer coisa. Não um lixo, nem um tapete. Como se ser "Lean" representasse muita coisa nos dias de hoje! Mas vá lá, ele precisava de auto valorização!

Não conseguia ver-se direito no espelho. Sua visão estava embaçada em virtude das lágrimas que enchiam seus olhos. Chamava-se de burro. Idiota. Besta! Babaca! Imbecil! Era tudo isso. Um monte de nada. Um saco de bosta! Doía muito. Muito mesmo. Alguém cravara uma faca em seu peito e segurando o cabo dela movimentava-a para aumentar a dor. Idiota! Imbecil! Burro! Babaca! Bosta!

Sozinho naquele pátio. Sentindo o cheiro de terra, ao invés do maravilhoso cheiro dele, que talvez nunca mais voltaria a sentir. Uma vez que tinha dito tudo o que guardou por quase três anos, estaria cada vez mais longe do amigo, não mais perto a ponto de sentir seu cheiro, seu hálito, o odor de suor e camisa no fim da aula de Educação Física, o cheiro do cabelo dele. Seu sorriso, de "vai ficar tudo bem", seu olhar de compreensão, seu olhar de carinho, seu olhar de tudo. Pra tudo ele tinha um olhar e Lean os entendia e decifrava e era capaz de descrevê-los -mas no momento em que mais precisara decodificar aqueles olhos verdes, fugira deles. A voz firme que aquela boca linda produzia. Queria-a. A pele que o Sol visitava, os cabelos que os ventos faziam dançar. As mãos, a parte dele, que Lean mais sentiu. Em apertos inocentes Lean a sentia e sentia vontade de beijá-la. Tudo isso estava perdido.

Não seria melhor não ter contado? Ter ficado e guardado pra sempre o que sentia? Se o tivesse feito não sofreria, agora. Teria tudo como antes. O teria como amigo, não era com isso que sonhara, mas era melhor do que nada. A megera da sua avó dizia: "Mas vale um na mão, do que dois voando". E ela tinha razão, a velhaca. Era melhor ter o seu amigo – e essa palavra fazia doer – do que não ter nada. Era melhor estar perto e calar-se, humilhando-se, mantendo-se calado só pra estar junto, só pra vê-lo de perto, só pra senti-lo, só pra ser amigo, só pra ser dele. Assim, quietinho, em silêncio, Lean foi dele. E poderia, sim, viver o quanto fosse possível, ao lado dele, e em silêncio. Esquecera do orgulho; era capaz de se submeter ao silêncio para não perdê-lo. Mas era tarde, até pra isso.

Era sexta-feira. Lean estava deitado em sua cama, com os olhos inchados e a cara vermelha. E depois deste desterro, um toc-toc na porta. Era ele. Mostrou-se Daniel, o sacerdote que iniciara Lean, que o batizara. Como estava bonito, agora com dezenove anos.

Daniel entrou no quarto e fechou a porta, à chave. Sorriu para o primo, ali deitado e notou seu estado.

"Por que chora? Emoção por me ver?" Daniel, falou com o mesmo tom de sempre. De superioridade. De virilidade. De sarcasmo.

"Não estou chorando. Acabei de acordar. Como você ta?" Lean tentou mudar o rumo da conversa.

"Vou bem. E você aqui no Rio, o que anda aprontando, hein?" Daniel sentou-se na cama, ao lado do outro.

"Nada. Não apronto nada. E você, continua desinocentando menininhos?"

"Meninos e meninas. Mas não são crianças. Não se preocupe. São bem velinhos, já. E sabem o que querem."

"Então você só dá mais um empurrãozinho..."

"Sabe como é, né, primo? Você sabe bem como funciona." E riu. "Não vai dar um abraço no seu primo? Faz muito tempo que a gente não se vê, sabia?"

Lean sentou-se na cama e abraçou o primo. Aquele abraço tinha um gosto bom. Era bom abraçá-lo, o seu primeiro. Daniel o conhecia bem. E por mais que fosse um traste, era ele. Era Daniel e não qualquer um. Ele sabia ser carinhoso com suas presas. O viril beijou o menino venusiano no rosto, um beijo demorado. Sabia que algo chateava seu primo. Fez-lhe carinho na bochecha. Lean sentia-se bem, ali, com Daniel, que o deitou na cama de novo e deitou-se ao seu lado.
"Primo, o que você tem? Quem te fez mal?" Daniel alisava os cabelos louros do primo e beijava sua testa. Ali, por incrível que pareça, Lean sentia-se seguro.

"Nada. Só problemas meus. Internos. Manutenção mesmo." Mentiu.

"Se tiver algum prevalecido fazendo mau a você, meu priminho, me fala. Eu arrebento a cara dele. Sabe o que eu fiz com o idiotinha do Levi, né? Ninguém mexe com você, viu?" E abraçou o primo, como muitas vezes tinha feito. Muitas.

Lean sentia-se bem. Era bom estar ali, outra vez, de novo. Esquecera-se de como era bom estar nos braços de Daniel. Sentir-se dele. Percebeu que era seu porto seguro. Estar ali com o rosto afundado no peito do primo. Lean o abraçava e esquecia de tudo. Tudo não. Um certo Mário rondava sua mente, passeando com seu sorriso e olhos de selva. Marcando seu caminho com migalhas de pão. Numa terra em que pássaros eram estritamente carnívoros.

Os dois saíram. Daniel queria conhecer o Rio. E Lean, como bom carioca que se tornara, mostrava a maravilhosa cidade para o sul-rio-grandense. Lean tinha se esquecido de como Daniel era uma pessoa agradável, se acostumou a lembrar do primo como um coiote fronteiriço somente, mas ele era mais do que isso, era legal.

À noite, na hora de dormir, não dormiram.
Procurando em outros braços, teus abraços,
Me entreguei ao que chamam de anestésico.
Sim, a minha dor pude adiar.
Mas a ferida não foi fechada.
Anestesia alivia, não cura.
Morfina, para mim, foi meu primo, naquele dia.

Lean, abriu os olhos, de manhã, e achou estranho não ter seu primo do seu lado na cama. Olhou pro lado e viu que Daniel estava deitado na cama de puxar ao lado da sua e também estava acordado.

"Pensou que eu tinha ido embora, primo?" Falou sorrindo, como sempre. "Não tão fácil, só vim pra cá pros seus pais não virem a gente. Eles não sabem de nada, né?"

"Não. Não contei pra eles. Nunca falei nada. Eles devem imaginar que eu não seja mais virgem, mas não desconfiam de você comigo. Eles já saíram. Volta pra cá." Lean puxou o braço do primo.

Queria se afogar em Daniel. Era bom. Escapar da vida, da dor, de Mário. A única coisa impossível era escapar de Mário. Daniel foi, ficou com o outro e o abraçou.

"Vim em boa hora, né Lean?" Daniel olhava nos olhos de Lean.

"Como assim?" Fez-se desentendido.

"Eu acho que você não ta bem." E estava certo.

"Amor não correspondido." Lean contou a Daniel o ocorrido.

Era ruim, muito ruim contar aquilo. Aquela derrota.

"Ele é um idiota, Lean", sentenciou Daniel. "Não vale a pena, primo."

Ouvir aquelas coisas era pior do que falar mil vezes o acontecido. Lean não gostou de ouvir Daniel chamando Mário de idiota. E valia sim, valia a pena, ainda. Não queria acreditar que teria um fim. Na verdade não teria um fim, não tivera um começo, como pode haver um fim?

Capítulo 10 - Biblioteca, o asilo

Refugiados entre as estantes de livros empoeirados, velhos e mofados, estavam os assustados, arregalados e lacrimejantes olhos de Mário. Ele estava nervoso, seu coração brincava de carnaval, e a quarta feira parecia não querer chegar. Como aquilo tudo era possível? Por quê? Era Lean quem estava lá. Era ele. Mário não entendia porque tinha feito aquilo se tudo o que ouviu era...Teria sido medo? Idiotice, bobeira? O que o fez sair de lá, deixando o seu amigo? Como estaria Lean, agora?

Não reagiu bem. Deveria ter ficado, ouvido o que o outro tinha pra dizer. Ouvir tudo. Mas a covardia tomou conta dele. Ao seu lado estavam Dorothy, o cachorro, o homem de lata e o espantalho, juntos faziam uma equipe perfeita, peregrinando pelos tijolos de ouro.

Andou pela biblioteca sentindo-se um saco de esterco, um parasita, alguém que não foi. O que ficou parado. Sem tomar a canoa, sem entrar no rio, sem buscar a margem terceira.

Da prateleira dedicada à Literatura Espanhola, tirou um livro no qual se encontrava o poema que mais gostava em toda sua vida. Leu as palavras que tanto bem conhecia:

"Perdi-me muitas vezes pelo mar, como me perco..." As palavras de Garcia Lorca faziam com que se lembrasse de Lean, seu melhor amigo. Os livros, nas prateleiras, eram sua platéia. Seu público não o aplaudia, não compactuava com sua atitude infame e covarde. Os livros que ali estavam apontavam suas páginas para ele, recriminando-o; seus títulos olhavam-no fixamente, e suas palavras o insultavam.

As lágrimas eram o Corifeu daqueles que diziam: "Covarde! Não se abandona um amigo!" Deixou-se escorregar pela parede gelada do lugar, até cair no chão. Quedado, paralisado, pronto pra virar geléia.

De onde menos se poderia esperar: um espelho. Desses de mão, caído entre os livros. Estaria, por aquela biblioteca, Hermione Granger fugindo de algum basilisco? Não, não estava. E o próprio espelho, que para a bruxa servira de refúgio e socorro, para Mário servia de basilisco. Feria-o de morte. O que via nele não era agradável, ora medonho, ora acusador. Via-se a si próprio, via sua imagem. De um covarde. E por outro lado acusava-se com olhos malignos, petrificadores, assassinos.

Capítulo 9 - Abrindo o jogo - Mário

Eram meio dia e alguma coisa, estávamos nós dois, Mário e eu, sentados a uma mesinha de pedra no pátio da escola. Estava deserto. Naquela hora, o turno da manhã já tinha ido embora e o da tarde ainda não tinha entrado. Nós ficamos lá nem lembro o porquê. Mário tava falando umas besteiras sobre Gramática. Coitado. Não entendia nada de nada nesse assunto. Ele estava com medo de ficar reprovado por que sei lá o quê, e também porque a professora Márcia Leite não ia muito com a cara dele. Ele falou muita besteira, e meu pensamento voava dali e pra li ao mesmo tempo. Eu pensava em Mário, mas não nas idiotices que ele falava. Pensava nele, nos olhos, e no quanto eu queria vê-los apenas a distância de um centímetro dos meus, enquanto nossos lábios se amassem.

Pensava em seu coração, se ele um dia bateria por mim. Queria que esse dia fosse agora, queria que ele me amasse, que ele sentisse por mim apenas uma parte, 1/1.000.000 avos do que eu sentia por ele. Assim ele me amaria demais, de forma que não suportaria. Queria que fosse meu, de mais ninguém. Ninguém o amava como eu. Tenho certeza. Mas meu amor era feio. Minha forma de amar não protagonizava a novela perfeita. Não era bonita, e nem era abençoada na Igreja. Eu não podia amar, esse direito me havia sido roubado. Será que teria de morrer com aquilo preso na garganta?

As horas correm.
Eu não entendo porque o tempo passa.
Passa e passa.
E eu aqui, calado, mudo.
Inércia!
Quem passou cola em meus lábios?
Quem comeu minha língua?
O meu gato não a queria.
Como posso saber?
Nunca perguntei.
Idiota!
Pelos meus tornozelos,
Sinto passar a agonia
E vem discorrendo pelas minhas pernas,
Joelhos e cochas.
Fazendo os meus ossos tremerem.
Sinto-a na barriga,
Embrulhando-me o estômago.
O embrulho foi para o coração,
Lá virou aperto,
O que fez tremer o corpo.
Foi parar no cérebro,
E lá virou certeza.
Voltou ao chacra,
E lá ação.
Subiu a garganta,
Às pregas vocais,
Os lábios se abriram
E a língua dançou:
—"Euteamo."

"Quê?" Ele olhou pra mim.

"Eu te amo!" Fui firme em olhá-lo.

"Como assim? Você me ama?"

"Amo. E sei que não é normal, pra você..." virei me de costas, tinha vergonha de encará-lo. "Eu não entendo isso. Simplesmente amo você, amo demais e não posso parar. E nem quero. Sabe que às vezes até tenho vontade de chorar?! Sei que isso não é normal. É estranho um menino apaixonado por outro menino. Mas pra mim não é... O que me consola, é saber que o Cupido não escolhe suas vítimas; e ele me feriu de você. Por favor, me entenda..." Tomei coragem, não sei de onde a tirei, para olhá-lo. E ele... Ele não estava mais lá.

Eu estava sozinho, sozinho. Foi impossível conter as lágrimas. Elas eram teimosas: migraram dos meus olhos para o meu rosto e chão. Debrucei-me sobre a mesinha de pedra na minha frente, ela estava fria, minha alma estava fria; com o rosto enfiado entre os braços chorei, abafei meu choro, derramei minhas lágrimas.

Aquilo não era humano. Por mais que não me amasse, que me odiasse até, mas me ouvisse e tivesse a dignidade de me dizer não. Mas não era possível odiá-lo. O amor corria em minhas veias ainda, e coagulava. Ardia-me o peito em amor. Tudo o que eu queria era olhar nos olhos dele. Talvez se eu não tivesse sido tolo, ele teria ficado. Se eu não tivesse dado-lhe as costas, ele poderia estar me beijando. Se eu não tivesse lhe falado nada, ele estaria do meu lado, como bons amigos que somos. Ainda o somos depois deste falimento?

Eu queria vê-lo. Ver seus lábios, sentir seu cheiro, tocar seu braços, ouvir o ranger de seus dentes. Eu queria amá-lo. Por meu amor eu seria capaz de tudo, até de me humilhar novamente. Eu queria ser dele. Não queria que tivesse ido embora. Eu o queria ali, ao meu lado. Esse era o lugar dele. Eu queria ser dele, nem que fosse por apenas uma noite. Eu seria capaz de me rebaixar a tanto e de novo...

A sirene tocou, dentro de alguns minutos o turno da tarde estaria, em peso, no pátio. Eu não quis compartilhar minha cara inchada com eles, levantei-me, fui-me de lá.

* * *

Em sua cama, Lean chorou o choro dos justos, dos tristes e dos desesperados. Queria matar seu travesseiro, companheiro de todas as horas. Poderia matar alguém. Extravasar, que fosse. Poderia matar-se a si mesmo. Acabar de vez com sua vida. Negar-se o direito de viver, pois a vida lhe foi dada e ele não soube vivê-la. Ainda a merecia?

Lean mudou de posição na cama e seus olhos foram direto a uma fotografia na qual Mário o beijava no rosto, e Lean olhava para a máquina sorrindo. Respondida a pergunta? Sim, merecia! Merecia a vida como uma criança que sai do ventre de sua mãe. Tinha o que buscar, tinha um porquê de viver. Tinha Mário. Não, não tinha nada. Nada, nada. Amou o travesseiro. Acreditou ser ele, Mário o amamdo. E chorou mais.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Desculpas

Bom, pessoas que lêem aqui, eu tenho de me desculpar e tal. Fiquei sem Internet e distante de tudo. Aff! Não dá pra ser feliz sem Internet! Não mesmo. Mas o carinho de uma amiga me fez dar um jeito e voltar a postar aqui. Bjo, Nat! Espero que você aproveite, e não só ela. Mas voltando a ela, outra vez, devo desejar que o barco não afunde. Que os marinheiros nos salvem do afogamento! rsrs. Se é que ela me entende. Sim, entende! Bjos a todos, e vamos em frente!
Ah, os novos capítulos são o 7 e o 8. Se envolvam, Lean merece nosso carinho!

Com carinho, o contador.

Capítulo 8 - Private

Era manhã de sábado, os amigos do colégio estavam prestes a se reunirem na casa de Lean para uma festa de confraternização pelo fim do ano letivo, que se dera na última sexta feira. A turma terminara, agora, a segunda série do ensino médio. Era um tempo de festa, é claro, mais um degrau, mais uma vitória.

A private teve inicio à medida em que os amigos foram chegando e por volta das vinte horas todos já estavam lá. O pai de Lean estava viajando a serviço da Marinha e sua mãe tinha ido para o Rio Grande do Sul visitar a família, ou seja, estavam todos livres. E não demorou muito para aquelas cobras ganharem asas e voarem alto: bebidas alcoólicas começarem ser ingeridas por aqueles jovens de apenas dezesseis anos. Lean prezou sua sobriedade, sentia em si o peso da responsabilidade de ser o anfitrião daquela festa; a casa era sua, e precisava manter o controle.

"Lean, cara, eu preciso de você. Só você pode me ajudar," Fernandinha puxou Lean pelo braço e foi com ele até um canto da sala, um pouco desconcertada ela estava.

"O que foi, amega?" Perguntou Lean, descontraidamente enquanto fingia dançar, balançando a cabeça e os ombros.

"Eu to muito afim do Mário, muito afim mesmo. Ele é um gato e tem muito tempo que to afim dele." Ela olhava atenta pra Lean. "Quebra essa pra mim, dá uma idéia nele, por favor, Leãozinho. Vai lá. Ele é teu amigão." A última frase da amiga tivera o efeito de uma espada, que empalava Lean sem piedade. Ele era seu amigo, "amigão". Não era nada além disso. Ela ainda o chamara de Leãozinho, só quem o chamava assim era Mário. Lean ficou um pouco tonto e perdido, isso não escapou dos olhos de Fernandinha. Depois de roubar um pouco de ar infestado das fumaças dos cigarros de baile, com cheiro de álcool e gente suada de tanto dançar, Lean, falou:

"Tudo, bem. Eu falo com ele." Lean pensou que nunca mais diria algo tão pesaroso quanto... Mas aquilo era pior, dizer pra sua amiga que a "colocaria na fita" do amor da sua vida doía demais.

Era muito altruísta, era muito Isabel, e não queria ficar por aí deixando a marca de uma, nem de duas, nem de cinqüenta lágrimas.

Caminhou até o amigo, no caminho, Verônica não lhe estendeu a toalha, nem Simão lhe ajudou com o fardo. A via foi longa. Era triste, entregaria, em breve, seu ouro nas mãos da pirata. Não tinha escolha, deveria ser aquilo, ou contar a ela que era perdidamente apaixonado pelo garoto.
"Már-io, ouve," uma lágrima abusada e desobediente, como sempre eram as lágrimas, escapou da prisão dos olhos e se aventurou pela face do menino.

"Leão, por que ta chorando? O que foi?" Mário pegou na mão do amigo e o levou até a cozinha, onde não havia ninguém. Sentou-o numa cadeira, sentou-se em outra. "Fala, o que aconteceu?"

"Nada," e forçou um riso. "É que eu... lembrei da festa. Essa festa me fez lembrar da despedida dos meus amigos pra mim, quando vim pro Rio", Lean enfiava os dedos na cabeleira loura, como costumava fazer, quando estava nervoso. "Mas o que eu quero te dizer," pediu a Deus em pensamento que o ajudasse, não podia demonstrar o quanto sofria sem ter de entregar os seus sentimentos. " É que a Fernandinha me disse que ta afim de você e pediu para eu... pr’eu..." As lágrimas tentaram de novo organizar um motim e fugir de sua prisão, mas outra vez o poder divino repreendera uma rebelião.

"Ela pediu pra você...?"

"Pra eu te dá o papo, entende. Ela quer ficar contigo." O rosto de Mário enrijeceu.

"E isso te entristece assim?" Perguntou Mário, seu rosto, agora, tinha um "quê" de esperança.

"Não!" Deus não impedira as lágrimas, apenas retardou sua partida, para que viessem no momento certo. "Eu já disse que é por causa da... da festa de despedida dos meus amigos pra mim." As lágrimas eram feitas de balé, tango e carnaval, dançavam livres pelo pista, confessando no dance floor, a face de Lean. E mais dedos nos cabelos louros.

"Olha pra mim, Leãozinho. Primeiro, não chora. Saudade é uma coisa boa." Mário secou as lágrimas do rosto de Lean. Compreensão e dúvida e um pouco de frustração no rosto do moreno.

"Segundo, eu quero que você diga a ela, que não rola, pois... tem alguém, alguém que manda no meu coração, que manda aqui," apontou pro peito. Olhando firme nos olhos de Lean. "Eu não quero abrir minha selva pra mais ninguém, só uma pessoa tem a chave, e essa pessoa é... É muito especial. E se meu coração é uma selva, essa pessoa tem acesso ao trono. Diz a ela que não dá, eu pertenço a outrem." Mário olhou nos olhos de Lean, como se tentasse passar uma mensagem em morse, que não foi captada, a base receptora estava desligada. Mário ficou olhando as costas de Lean, que agora se distanciava dele.

Feito um pombo, Lean levou a mensagem à Fernandinha ainda desconcertado de todo.

"Ele disse que não dá, Fernanda. Ele diz que tem outra pessoa." Disse Lean de cara emburrada. Fernanda percebeu isso, segurou na mão dele."

"Lê, eu não queria ficar com Mário. Desculpa eu fui infantil." Ela parou de falar, olhou pro lado aflita. "A gente pode sair daqui?"

Os dois foram pro quarto de Lean, e Mário viu aquilo, ficou de lado, como quem não pode participar e se viu pegando mais um copo de hi-fi. Lean fechou a porta, Fernandinha estava sentada em sua cama, o garoto puxou uma cadeira e sentou de frente para ela.

"Fala." Disse Lean diante do silêncio da amiga.

"Eu tava fazendo um teste." Ela evitou os olhos dele. "Eu queria ver sua reação ao saber que eu queria ficar com o Mário," mordeu o lábio inferior envergonhada. "E pra ser sincera, eu percebi que não foi das melhores, você vacilou. Parecia transtornado."

"Mas, onde você queria chegar com isso, Nanda?"

"Eu queria ter certeza de uma coisa," e olhou bem dentro dos olhos de Lean. Pronto, ela conhecia seu segredo, será que tinha dado bandeira? Fernanda sabia de tudo...

"E o que isso quer dizer pra você?" Perguntou um Lean de olhos arregaladas temeroso da resposta.

Fernanda se aproximou muito, e bem rápido, de Lean, que sem poder prever o que viria, foi surpreendido por um beijo. Beijo por beijo, não era tão diferente. Bocas são iguais, no fim das contas. Não concordam em gênero. E Lean respirou de olhos fechados tentando digerir o ocorrido enquanto era atentamente observado pela aflita Fernanda. Ele abriu os olhos incrédulo, e um pouco de alívio se apossou dele; estava seguro, pelo menos.

Ele não falou nada. Percorria seu cérebro na tentativa de encontrar palavras e mesmo que tivesse decorado um bom dicionário, julgava-se incapaz de encontrar uma adequada.
"Lean?! Fala alguma coisa."

"Nanda, isso é muito estranho. Eu nunca pensei em você desse jeito." A menina fechou os olhos, arrependida por colocar tanto em jogo, e além disso: perder. "Você sempre foi minha amiga, e é assim que gosto de você. Eu... eu sinto muito."

"Eu é que fui idiota. Fiz joguete com você e com o Mário só pra descobrir uma coisa que eu podia ter perguntado. Imagina se o Mário aceita. O que eu ia fazer?!" E riu débil de si mesma. "Me desculpa, Lean."

"Tudo bem, amiga." Lean segurou no braço dela.

"Mas uma coisa ainda me intriga," ela levantou os olhos . " O que te deixou tão inquieto nessa história toda?"

"É que... que," Mais mentiras viriam? Não! Tava cansado delas. "Eu gosto do Mário. Eu o amo. E é muito ruim ter que "chegar" em quem você ama pra outra pessoa."

Fernanda parou chocada, o rosto estampava choque e perdia a cor, assim também os lábios.

"Você é gay?" A expressão era de nojo no rosto de Fernanda.

"Sim." A garota, de negra, estava branca feito esta folha de papel na qual eu escrevo. E tinha o olhar fixo em Lean; não porque quisesse, mas por estar estatelada. "Nanda..." tentou o garoto colocando a mão no cabelo da amiga.

"Lean, não me toca!Eu não quero."

"Eu pensava que não fosse dada a discriminações."

"E não era. Até acontecer comigo. Eu não discrimino assassinos, nunca mataram ninguém da minha família. E não discriminava gays, até descobrir que o garoto, que eu amo, é um deles. Por que você deixou que eu me apaixonasse? Por que não impediu isso?! Você devia ter..."

"A culpa é minha?!" Lean levou a mão ao peito. "Ei, eu nem fazia idéia do que você sentia. Isso é neurose sua."

"Neurose?! É você que tem um distúrbio, aqui, Lean. Não eu. Eu sou normal. Uma pessoa normal. Nasci como eu sou. Não mudei. Não virei o lado. Você que tem neuroses, distúrbios, problemas, querido. Você é viado. E isso dói, Lean! Como eu não percebi antes?! Claro! Você e o Mário. Leãozinho pra lá, mariquinha pra cá. Hum!" Ela debochava. "De namorinho os dois. Justo eu, tão esperta..."

"Cala a boca e não fala merda. Você já falou um monte num espaço muito curto de tempo. Não há nada entre o Mário e eu. Absolutamente! Eu gosto dele e isso é tudo; ele nem sabe disso. E espero quer continue sem saber."

"Não se preocupa, não." Ríspida, ríspida. "Eu nunca vou falar nada. De gente como você só quero estar bem longe," e saiu do quarto.

Lean olhou no relógio, e viu que era a hora dos sonhos serem desfeitos, da carruagem virar abóbora. Abriu a porta do quarto que dava para a varanda, uma vez nela, sentou-se no chão. Da e pela grade olhou os poucos carros que se movimentavam lá em baixo. Estava muito confuso. Muita informação; ia explodir o "HD". Mário gostava de uma menina e Fernandinha era apaixonada por ele, Lean; mas agora parecia odiá-lo. E ainda o beijo, que não era diferente demais. Era bem parecido até... E toda a repulsa da amiga. Lean pensou que não poderia mais chamá-la assim. E tudo tinha acabado, existia uma menina no coração de Mário. Ele era apaixonado por essa menina, quem seria ela? Ela manda nesse coração. Parafraseou Lean, a sentença, como se estivesse numa missa e coubesse a congregação repetir aquelas palavras: "Ela manda nesse coração." Pessoas apaixonadas, às vezes, têm a feia mania de jogar "resta um", "paciência" e montar "quebra-cabeça".

Olhou pro céu, tinha vontade de voar. De ser livre, de não estar mais ali, de ir embora para um lugar melhor. Um lugar onde o Cupido não o pudesse ver. Engraçado era que, mesmo depois de anos e anos fazendo a mesma coisa, Cupido não ficou com tendinite! Queria sair dali. Queria ser livre. Queria os pastos verdejantes. Queria deitar-se no colo de Deus, ir dali para um melhor lugar.

Olhou pros braços. Eram asas, agora. O vento batia em sua face, vinha convidá-lo para um passeio em suas asas, mas um brusco trovão acabou com o transe, trazendo, Lean de volta à varanda de seu apartamento. "Xô!" Disse pra si, espantando fantasmas.

A sala da casa de Lean estava lotada de gente bêbada; os colegas de classe levaram alguns convidados, o que aumentou o número de jovens alcoolizados da festa. O anfitrião não tinha clima de festa mais e ninguém se importava com isso. Ninguém queria saber dele. Só queriam mesmo era um lugar sem pais para beber e fumar cigarros de baile escondido.

A lua foi perdendo o brilho, e assim chegava a despedida de muitos colegas. Eram três horas da manhã, quando todos já tinham ido embora. E Lean ficou se perguntando onde estaria Mário, não o tinha visto desde a conversa na cozinha. Parecia ter ido embora sem nem se despedir dele. Como assim?! Não fazia sentido. Eram amigos e não tinha acontecido nada de errado entre eles. Talvez Mário tivesse ido embora com a menina que manda em seu coração. E sabe lá Deus onde estariam ou o que estariam fazendo agora. Será que acontecera alguma coisa na casa do amigo, que o fizesse ter ido embora tão assim, às pressas?

Lean tinha acabado de trancar seu apartamento, e estava dando uma última olhada pela casa pra ver se tinha alguma coisa quebrada, vômito, enfim, queria fazer um balanço geral da private. E foi assim que, caído atrás do sofá, encontrou Mário. Parecia estar dormindo, ou até desmaiado. Lá estava seu melhor amigo. Deitado com a cabeça encostada na parede, seu olhos estavam fechados, sua boca aberta e sua pele pálida. Lean largou a pilha de CD’s que estava em sua mão para ir ao encontro do amigo, socorrer-lhe; não parecia bem.

Tocou-lhe, estava suando frio. Lean pegou no rosto de Mário e chamou por seu nome:

"Mário." E repetiu o nome mais outras vezes até que:

"Lean. Lean, me ajuda. Me ajuda. Ta tudo rodando aqui, eu to enjoado, acho que vou vomitar, não sei. Leãozinho me salva. Me salva, Leãozinho. Leãozinho, não me deixa. Fica comigo, Leãozinho." Seus olhos estavam vidrados, Lean já tinha visto muito outros amigos e a si próprio nesta situação, mas nunca ele. Sempre tão controlado, nunca bebia mais do que devia. Ele não, não seu amor. Não podia estar assim. Tinha medo, que tivesse extrapolado e precisasse de um médico. Não o Mário.

"Calma, Mário. Vai ficar tudo bem. Você só tomou um pileque, isso vai passar logo, logo."
A cabeça de Mário rodou e a boca do garoto salivou, três segundos depois o tapete da mãe de Lean estava inundado com parte da bebida e da comida ingeridas por Mário naquele dia. Lean olhou tudo aquilo, sentiu seu estômago embrulhar, mas não tinha tempo para essas meninices. Precisava cuidar do outro. Sempre que isso acontecia com alguém, havia sempre outro alguém que cuidava e fazia o serviço, assim Lean fugia. Mas desta vez era diferente, eram somente Mário e ele. Tinha que superar essa besteira.

"Mário, ta tudo bem? Você quer vomitar mais?" Lean estava muito aflito, estava sozinho, sem ninguém para ajudá-lo. Deveria levá-lo para o hospital? O que fariam lá numa situação dessas? Injeção de glicose! Esse seria o medicamento. Açúcar! Isso Lean tinha em casa.
Depois de limpar o rosto vomitado do amigo, deu-lhe várias colheradas de açúcar fazendo-o engolir. Sabia qual deveria ser o próximo passo: um banho. Esse seria mais difícil. Segurar o amigo e banhá-lo ao mesmo tempo não seria fácil. Sem contar que era apaixonado por ele; e como se comportaria? Qual seria sua reação diante da nudez de seu amado? Resolveu não pensar nessas besteiras. Mário estava ali, passando muito mau e precisava de sua ajuda, se tinha de fazê-lo, ele o faria.

"Mário, você precisa de um banho. Vem eu vou te ajudar."

"Eu vou tomar banho, eu vou tomar banho." Mário, coitado, queria parecer responsável.

Pôs o amado sentado no vaso sanitário e tirou-lhe a camisa vomitada e lá estava aquele corpo que muitas vezes já tinha visto, e até tocado, num encontrão ou numa brincadeira qualquer, ou ainda num saboroso abraço de amigos . Mas seu desejo era explorar aquele tronco de barriga saliente com seus sentidos, queria ouvi-lo, queria sentir seu gosto, seu cheiro, queria sentir sua alma. Porém não podia. Não daquele jeito. Não com o outro lerdo como estava. Respirou fundo despiu-lhe os tênis e as meias. Com muito cuidado e muito carinho. Faltava-lhe no corpo a calça jeans, Lean não queria tirá-la; Mário ficava lindo de jeans. Com muita dificuldade, o sóbrio admitiu que era necessário tirar-lhe a calça. E assim foi feito. Enquanto Mário resmungava coisas sem sentido, o outro desabotoou sua calça, o colocou de pés e com um pouco de dificuldade despiu-a.

Lean estava nervoso, estava ali. Diante do amor de sua vida, que se encontrava apenas de cueca, pronto para tomar um banho, que ele daria. A cor da cueca? Ta aí uma coisa que não se deve contar! Coitado. O garoto nem conseguiu achar em si testosterona suficiente para promover uma ereção, todos os seus hormônios haviam sido transformados em adrenalina.

O banho dado foi bastante superficial, era mais pra que a água gelada caísse no garoto. Lean esforçou-se o máximo pra não se aproveitar do amigo, queria-o e muito, mas não ali. Não daquele jeito.

Nesta época, Lean ainda nem tinha ganho dos pais uma cama com um outra auxiliar em baixo, assim só tinha uma cama para que dormissem. E tudo o que Lean queria era dormir no canto, mas achou mais prudente colocar o bêbado longe da beira, para que não caísse. E Lean se deitou ao seu lado, depois de ter limpado o vômito e de ter tomado o próprio banho. Ligou o condicionador de ar e os cobriu.

Uma cama de solteiro. Perfeita para corações apaixonados. Ali, deitados, os dois obrigatoriamente, se tocavam. Algumas obrigações são prazerosas. E Lean sonhando, mesmo antes de dormir. Mário acordou, sentou-se na cama e chamou Lean, que fingia dormir.

"Lean?"

"Oi."

"Se incomoda se eu for pra beira, é que eu prefiro."

"Não."

E por um instante, Mário se deitou sobre Lean, enquanto trocavam de lado na cama. Não demorou muito e o braço esquerdo de Mário estava embaixo da cabeça de Lean, que estava recostada no peito do outro. O que era aquilo? Mais uma vez! Amizade? Amor? Lean sonhava, dormindo, acordado, não teve muita noção.

"Café forte?" Lean perguntou quando o amigo chegou à cozinha.

"Sim, aceito." Respondeu uma linda e muito rouca voz. O sol invadia sem piedade a cozinha de Lean.

"Senta aí. Toma café. To cansado de fazer isso sozinho, meus pais estão viajando desde quarta." Mário sentou-se ao lado de Lean e seus pés se encontraram em algum lugar embaixo da mesa.

"Me fala aí, Lean. O que aconteceu ontem, hein?" Perguntou pegando a xícara de café da mão do outro.

"Bom, longa história... Você bebeu, bebeu e bebeu, e suponho que tenha bebido mais um pouco", Lean sorriu distraído, com os dentes e com os olhos. Mário gostava de quando o amigo ria assim, fazia-o feliz. " No fim da festa eu fui olhar pela casa, sei lá, por idiotice, não sei. Queria ver se tinha algo quebrado. E você tava lá. Caído atrás do sofá, daí eu te acordei e..."

"Eu vomitei o seu tapete, você me deu banho, me levou pro seu quarto e me vestiu uma roupa, agente dormiu junto na sua cama e... obrigado pelo presente" Mário concluiu.

"Como assim?! Que presente?"

"A cueca que você vestiu em mim. Era nova, eu vi. Você tirou da embalagem. Mas não precisava tanto, podia ate ser uma velha, ou até mesmo suja, seria sua Leão. Eu confiaria." E riu.

"Você é doido." Leia tomou um gole de café com leite. "Lembra de tudo, cara?"

"Tudinho. Principalmente de todo o seu carinho cuidando de mim. Eu não fico doido enquanto bêbado, só fico mau fisicamente minha psique fica sempre legal. Quero dizer, não saio de mim."
Ai, ai!

"Quando eu perguntei o que tinha acontecido," continuou Mário, "não estava me referindo ao porre, mas à parada da Fernandinha." Lean empalideceu. Outra vez aquele assunto? Logo àquela hora do dia! Tava tudo indo tão bem.

"Nada. Ela tava muito bêbada, falei pra ela o que você mandou, ela sorriu e me disse: "Sabe que eu te amo, né? Você é meu melhor amigo.". Tadinha." Mentira deslavada! Ou isso, ou contar toda a verdade, mas não podia.

"E foi por isso que você a levou pro seu quarto, pra cuidar dela?" Lean olhou pra Mário.
"Quê?!" Fez-se de tonto.

"Eu vi, Lean" Mário deixava um tom de impaciência e decepção escapar na sua voz; percebeu isso, e tentou algo mais tranquilo. "Não precisa mentir, cara. Sou seu amigo. Pegou ou não?!" Não conseguiu esconder a ansiedade na pergunta.

"Claro que não." Lean sentia o peso de ser amigo de quem amava, se ele se sentia tão entusiasmado com uma possível ficada sua, era porque não tinha o menor interesse. "Ela falou um monte de besteiras. Ela só queria atenção, sabe? O cara que ela gosta não tá na dela." Meias verdades. Isso existe?

"Pior que isso é viver na incerteza. Dúvida, sem saber se tá ou não na sua."

"Ah, sem essa, Mário! Qualquer garota fica caidinha por você. É só você escolher." Lean tentava saber quem era a tal.

"O que acontece é que eu não quero nenhuma delas." Mário separava as partes do biscoito recheado concentradamente. "Quem eu amo tá além dessa gente, mas das duas uma: ou não tá nem aí pra mim, ou vive no mundo da lua, a ponto de não perceber."

"Vai ver ela pensa a mesma coisa." Lean, impaciente querendo uma brexa, que Mário se traísse e dissesse um nome, mas não.

"É, vai ver pensa. E faz muito tempo eu sonho em saber o motivo de você ter ficado tão alterado com essa história toda ontem."

"Como assim há muito tempo?! Isso foi ontem!"

" O tempo? O tempo é uma coisa muito misteriosa. Um dia você vai entender."

Capítulo 7 - Close to you

Lean estava sentado na arquibancada da quadra da escola. Ele observava seus colegas de classe tendo aula de educação física, estava fora naquela aula, pois havia quebrado o pé e o engessado.
Dentre todos os meninos que jogavam basquete, um único tinha por inteiro a atenção de Lean. Era ele o único que era seu, Mário. Lindo correndo com seu "short de educação física", sorrindo, fazendo cara de homem, concentrado, sério, risonho. Lean podia ficar ali, pra sempre. Fazendo o que mais gostava, encenando Clítio. E se virasse flor, queria ser plantado no cume do monte mais alto. Queria olhar seu Apolo por todos os cantos do mundo.

E foi ele. Mário, quem marcou a primeira sexta, de três pontos. Era exibido, sim. Ele podia ser. Marcada a sexta correu em direção a arquibancada, e mais especificamente em direção de Lean. Abraçou o amigo combalido e deu-lhe um beijo na cabeça.

"Essa foi pra você, vê se fica bom logo. Quero te ganhar." E saiu. Saiu, mas deixou uma semente na cabeça de Lean "Quero te ganhar." Será que esta frase estava carregada de segundas intenções? Seria que ao dizer quero te ganhar, o amigo disse que queria ter Lean, ou era simplesmente vencê-lo no jogo? A primeira era mais agradável aos sonhos de Lean, que creu ser ela a alternativa correta.

Depois de um tempo de jogo, Mário deslocou o pulso e, dispensado da aula, sentou-se ao lado de Lean, no lugar em que agora tinha mais cara de hospital do que de arquibancada.

"Poxa, ta doendo muito." Mário segurava o pulso.

"Pede a sua mãe pra dar um beijo, isso sempre funciona." Sugeriu Lean aos risos.

"Minha mãe ta bem longe agora. Os meus pais estão viajando a trabalho e além do mais, depois de certa idade beijo de mãe não passa mais a dor, tem que ser outro tipo de beijo", olhou nos olhos do amigo ao seu lado.

Lean ficou sem ação, pareceu-lhe que Mário estava lhe cantando, mas por medo, ou lerdeza, não quis arriscar uma investida. Poderia ser que estivesse enganado. Não colocaria em risco sua amizade, nem seu anonimato, melhor dizendo, armarionato. Da última vez que se arriscou, não foi muito feliz.

Talvez a dor ou o cansaço, ou quem sabe os dois, ou ainda o amor, fizera com que Mário recostasse a sua cabeça no ombro do amigo, que deitou a sua sobre a do outro. Estavam ali, como dois bons amigos que eram, a escola não desconfiava de nada, mas Deus, onisciente que só Ele, sabia que na mente daqueles seus filhos, aquele não era mais um gesto de amizade, mas de alguém que quer amar e ser amado. Estar assim, um tão perto do outro fez Lean lembrar de uma música, que era cantada antes mesmo de ele nascer :"Why do birds suddenly appear, everytime you are near? Just like me they long to be close to you..."

Sem perceber o que estava fazendo, Lean começou a cantar bem baixinho um pedaço da música:
"On the day that you were born the angels got together", numa fração de segundos Mário tomou fôlego e completou.

"...and decided to create a dream come true, so they sprinkled moon dust in your hair of gold, and starlight in your eyes of blue", o olhar dos dois se encontrou e riram.

"Você conhece essa música? É tão velha," Lean estava na verdade era sem o que dizer estava encabulado e ao mesmo tempo nas estrelas por ter dividido um momento como aquele com Mário. Que momento, afinal?!

"Como não? Minha mãe me criou ouvindo isso. Não há uma só música do The Carpenters que eu não conheça. Guardo essas músicas bem no centro do meu coração de selva."
"Você e essa sua mania besta de chamar o coração de selva!"

"E ele é, Leão." Disse Mário em tom misterioso enquanto contemplava o nada.

Duas semanas depois, Lean já não tinha mais o pé imobilizado e nem mesmo o tornozelo de Mário demonstrava sinais de luxação. Se a narrativa tivesse inicio neste parágrafo, algum leitor poderia imaginar que duas semanas antes os dois, Lean e Mário, haviam se atracado numa briga desgraçada. De maneira engraçada, eu diria que este leitor não estaria, de fato, errado. Os dois não tinham brigado, mas suas almas estavam impacientes, querendo ser completas, assim estavam se engalfinhando. E as feridas do corpo físico só fizeram refletir a dor e o desejo internalizados em ambos os meninos.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Capítulo 6: Mário

Lean acordou as seis da manhã daquela segunda feira de fevereiro onde teria lugar seu primeiro dia de aula naquela nova vida; não tinha dormido muito bem, devido a ansiedade pelo começo do que seria sua nova vida.

Acordara mau e preguiçosamente. Deixou de má vontade a cama, os lençóis e o travesseiro, queria passar o resto do dia com estes amigos de horas boas. Amigos.

Amizade era uma coisa que Lean pretendia evitar. Não queria mais amigos como os que tivera no Rio Grande; gostaria de encontrar uma Susana, até, mas não alimentava esperanças de que fosse possível. Preferia ficar no seu mundo, curtindo sua própria companhia. Lean percebeu que enquanto vivia só, enquanto tinha pra si seus segredos, era feliz. A presença de um terceiro, na relação Lean e Lean, prejudicou sua vida. Fez mau a algo que estava indo bem. Mas Lean não sabia o que era ir bem, viver escondido, guardado não é lá uma grande idéia do que é viver bem. E quem é que sabe o que é viver bem? Mas o garoto estava com isso na cabeça. Ele mesmo era sua melhor companhia, fez em volta de si um casco, de onde não sairia. Mesmo que batessem, mesmo que deixassem recado na secretária. Não queria se envolver em nada, com ninguém em nenhuma circunstância. Inconstância de adolescente! Fato!

Fitando os olhos azuis no espelho do banheiro, Lean sorriu para si, encorajando a si mesmo. Era um dia diferente na vida dele. Estudou toda a sua vida no mesmo colégio e entrar numa escola onde ninguém o conhecia seria um pouco desconfortável.

Lean olhava uma listagem fixada na parede. Finalmente, encontrara seu nome na lista do 1º ano, turma A.

“Turma A?” Lean, virou-se. E parado a sua frente estava um menino. Moreno, um pouco mais alto que Lean, com cabelos negros e olhos verdes. O garoto ficou sem ação, era muito bonito o outro...

“Ei, rapaz, acorda! Ta dormindo ainda?” Perguntou o moreno sorrindo debilmente.

“É. É sim. Turma A”, desconcertado e perdido em seus pensamentos Lean respondeu a pergunta do outro.

“Eu também. Você sabe onde fica a sala?”

“Não, eu sou novo aqui.”

“Ah, eu também. É melhor tentarmos achar juntos. E... como é o teu nome?”

“Lean, e o seu?”

“Mário. Você tem um sotaque diferente, de onde vem?”

“Do Rio Grande do Sul.”

Os dois procuraram juntos a sala 307, que abrigaria o 1ª ano, Turma A. Não foi muito difícil encontrá-la, afinal, espalhados pela escola, havia cartazes que indicavam o caminho. Caminho que era muito mais fácil se seguido junto de alguém. Tudo era novo, tanto pra Lean quanto pra Mário. Era melhor ser dois, do que um. Lean se queixava consigo mesmo, não devia estar fazendo amizade. Mas era sempre assim: Lean se prometia algo, decidia e depois jogava fora as promessas.

A sala não estava muito cheia ainda, algumas meninas abafaram risos quando os dois entraram. Lean ficou vermelho e Mário pareceu não ligar. Sentaram então, bem no centro da sala, Lean, na terceira carteira e Mário na quarta, logo atrás.

“Eu sou daqui do rio mesmo, De Niterói. Conhece?” Mário falou.

“Ainda não. Sou muito novo. Cheguei mês passado, ainda não fui a um monte de lugares.”

“Não esquenta, nem eu fui. Acontece que meu pai achou que seria melhor morarmo por aqui.” Mário dizia enquanto se distraia percorrendo com os dedos as letras feitas com liquid paper sobre a mesa.

“Por quê?” Lean olhou para ele. Mário exitou. “Ah, me desculpa. Não precisa falar.”

“Ta certo, então.” Mário desviou o olhar. E tentou de maneira muito risível mudar de assunto. “Que saco! Daqui a pouco vão pedir pros alunos novos levantarem a mão e perguntar nossos nomes, de onde viemos de que escola... Isso é chato.”

“É a primeira vez que faço isso. Nunca mudei de escola.”

“Sério?! Não se vê muita gente como você por aí.” E riu, grato de que o novo assunto proposto tivesse sido tão bem aceito.

“Você vem do Sul, não é?!” Perguntou uma das garotas que riram, ela estava sentada na carteira a frente da de Lean.

“Sim. Rio Grande do Sul. Meu sotaque me entregou?” Lean sorriu.

“Huhum. Eu tenho uma prima que mora em Florianópolis.”

“É? Mas aí é Santa Catarina.”

“É?” E fez uma careta. “Fernanda.” Disse esticando a mão direita. “Fernandinha, se preferir.”

“Lean,” disse pegando na mão dela. “ E esse é o Mário.”

“Oi, Mário!” Disse Fernandinha acenando de sua carteira para Mário, que fez um meio e tímido sorriso.

Uma professora chegou na sala e a conversa cessou. Não demorou muito para que Lean, Mário e alguns outros levantassem a mão e se apresentassem. E não só nesta aula, mas na outra que antecedeu o recreio.

“Você não vai sair da sala?!” Fernandinha perguntou a Lean.

“Vou, mas to esperando ele.” Apontou para Mário, que guardava o caderno na mochila.

“Ah, ta. A gente se vê lá em baixo.” E saiu saltitante com sua trança.

“Espivitada ela.” Mário ria.

“Adolescentes!” Lean fazia que não com a cabeça, bancando o adulto decepcionado. Depois riu também.

Depois, na hora de a mamãe contente ir ver, Lean passou pelo portão, mas um vergalhão intruso não o deixou seguir. Ele sentiu a pele do lado arder, Mário olhou pra trás e se assustou com a cena.

“Meu Deus!”

“Calma, não foi nada. So me arranhou.” Disse Lean tirando o vergalhão de dentro da blusa com a ajuda do porteiro.

“Eu não sei o que isso ta fazendo aí.” Falou o homem nervoso. “Podia ter sido pior.” Só Lean sabia como tava ardendo e sangrava um pouco.

“Que bom que não foi nada.” Lean percebeu o tamanho estrago em sua camisa.

“Você vai precisar de outra blusa.” Mário também tinha os olhos no rombo que se formou. “Eu te empresto uma.”

“Você tem uma camisa extra na mochila, ou coisa assim?” Lean perguntou enquanto os dois já estavam andando de novo.

“Não, cabeção. Eu moro aqui perto. Você vem até minha casa eu te empresto uma blusa.”

“Ah, não precisa se incomodar.”

“Não incomoda. Se quiser...”

“Vou entrar no ônibus e descer em na porta do prédio, nem vai aparecer muito.”

“Então tá. A gente se vê amanhã.” E estendeu a mão pro outro.

“Valeu!” Lean apertou a mão de Mário.

Os dias foram passando, e assim, as semanas, logo, os meses, e aquele colégio servia de palco pra mais uma amizade entre dois meninos. Uma amizade muito maior que a de quaisquer outros dois meninos. Eram mais que amigos, eram cúmplices. Mais que cúmplices, comparsas, companheiros. E tudo começara no aglomerado formado no saguão de entrada da escola.

“Praia do canto, hoje, Leão?” Um segredo compartilhado, Mário sussurrava ao pé do ouvido no amigo sentado uma carteira à sua frente, não queria que ninguém o adivinhasse.

“Claro. As sete, beleza pra você?”

“Tranqüilo, cara.”

Leão era um apelido que Mário dera a Lean em função de seu nome. Praia do canto era como os dois batizaram, pra si, uma praia de difícil acesso e sempre vazia. Os dois iam lá pra beber, encher a cara. Tomar uns “goró”. Estava acontecendo de novo. De novo não! Não, não, não! Distraído, Lean, coitado. Não se deu conta, se foi deixando levar.

Sentia falta do amigo, se longe. Gostava do seu cheiro; seu sorriso o agradava, sua voz nos segredos, sua atenção. Ah, não! Laços. Quando deu por si esteva atado num. Mas era um laço bom demais. Aproveitava cada instante com Mário só para estar perto. E foi na praia do canto, quando um Mário um pouco mais feliz do que o normal, gargalhou de uma história sem importância, que Lean parou. Observou o outro e sentiu. Deu por si. Estava amando. Aqueles olhos serrados de tanto álcool, que o olhavam tão profundamente. Lean sentia o coração vibrar em cada momento em que os dois se abraçavam em momentos de “quase queda”, em função da dificuldade de andarem na areia e por estarem alterados.