quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Capítulo 12: O abismo


Sou o lado leste.
Sou o lado oeste.
Estamos distante.
Isso me mata.
Há um abismo.
Não há ponte.
Há o vazio.
Há o nada.
Já fomos tudo.
Há o nada.
Éramos um.
Éramos tudo.
Há o nada.
Fomos amigos.
Não há ponte.
Há um abismo.
Há um luto.
Há um vazio.
Há o nada.
Sou o lado leste.
Sou o lado oeste.
Já não somos nada.
Sim somos nada.
E já fomos tudo.

Ninguém entendia nada, ninguém era capaz de entender. Ninguém imaginava nada, ninguém nunca imaginaria. Os dois, os melhores, os companheiros, os cúmplices, os irmãos.
Lean decidiu que não deveria mais se esconder, ele precisava ir a escola, fazer coisas, viver. Não tinha cabimento ficar trancado dentro de casa com um mundo inteiro girando, lá fora. Ele fazia parte dessa locomotiva gigante, que bem ou mal precisava dele pra se mover, afinal era uma das peças.
O coração disparou. O carro do pai parara em frente à escola, e Lean sabia que em minutos estaria... Não saiu do carro. Ficou pedindo aos céus por uma ajuda, que um raio destruísse a escola, para que não tivesse de entrar lá e enfrentar seus medos.
“Filho, você precisa ser forte. Não pode deixar que isso tudo estrague e estagne sua vida. Levante e vá.” Fernando tentava incentivar o filho.
“Eu vou, pai. E fique tranqüilo vai dar tudo certo.” Lean sorriu para o pai e lhe deu um beijo de despedida.
Cada passo dado eram mil batidas no coração, que talvez não fosse agüentar, talvez fosse apelar pra um ataque, um “abc” como já se ouviu dizer. Lean não conseguia andar direito, pernas de bambu foram trocadas pelas suas originais. As habituais escadas da escola foram um obstáculo a mais, mais um, no meio de tantos que enfrentaria naquele dia.
Quando o garoto entrou na sala ficou contente em notar que Mário não estava lá, talvez tivesse evadido pra sempre aquele lugar. Isso seria bom. Não! Nunca! Teria de vê-lo de novo. Teria de olhá-lo de novo. Morreria. Morria só de pensar. Sentou-se no habitual lugar. Nenhum colega perguntou o motivo da uma semana de ausência, sua mãe fizera o favor de ligar pra escola e mencionar uma virose; apenas perguntaram se estava tudo bem. O único que, de fato, sabia o real motivo da longa ausência de Lean era Mário. Bom, isso se o garoto não tivesse contado a ninguém o acontecido no pátio há dez dias.
O horário de tolerância explodiu: sete e quinze. Nada de Mário. E isso contentava e entristecia Lean. Queria adiar o encontro, mas queira vê-lo.
A sirene que anunciava o término da primeira aula soara. E Lean lembrou. Os portões tornam a abrir no segundo horário. Será que... Sim. Os olhos verdes acompanhavam os corredores de acesso à sala 307. Batidas na porta afastaram Lean de seu transe momentâneo. A porta da sala abriu e revelou os olhos mais lindos do mundo, os de Mário.
O garoto fez uma busca rápida pela sala com olhos, como quem procura lugar vago num dia de atraso, mas não era um lugar vago o que ele procurava, eram os olhos azuis de Lean, que ele queria encontrar naquela segunda feira. Um sorriso muito, muito, mas muito tímido mesmo e quase imperceptível se formou e rapidamente se desfez no rosto do moreno no instante em que seus olhos deitaram sobre o loiro. Lean também percebeu o quase não sorriso, e isso iluminou seu dia. Parecia um dia muito normal, a não ser pelo atraso de Mário, pois este sentou-se, como se nada estivesse acontecendo, no mesmo lugar de costume, numa carteira atrás de Lean.
Falou-se de química, história e inglês naquele dia. Mas Lean não anotou nada, não ouviu nada, não viu nada. Seu pensamento era um, apenas um, Mário, que estava tão perto, a meio giro de corpo, e tão distante, a um abismo de alma.
“Lean.” Era voz de Mário o chamando, mas Lean estava com medo, com medo do que viria. A começar pelo fato de não ouvir o habitual “Leão” como tinha se acostumado a ouvir o outro chamar. Lean correu, não olhou pra trás. Felizmente seu ônibus apareceu, fez sinal, entrou e sumiu. Mário ficou lá, com cara de taxo, mas entendeu que tudo aquilo era culpa sua.
Lean estava conseguindo prestar atenção às aulas e era isso que estava fazendo, quando Mário se inclinou de sua carteira e aproximou sua boca do ouvido do outro. Lean pôde ouvir a respiração do seu amor.
“Fugiu de mim ontem? Por quê?”
Lean não olhou pra trás, ao invés disso, mirou sem ver a professora de Geometria, pensando no outro, na carteira de trás; retas paralelas e perpendiculares não faziam sentido nenhum. Depois disso pegou a caneta e continuou copiando de onde parara e reparou que havia borrado o caderno, no instante em que ouvira a voz de Mário.
“Qual é, Lean. Vai me ignorar?”
A isso não era possível continuar passivo, precisava de réplica. Olhou pra trás. Encarou aqueles olhos verdes que tanto amava.
“Eu tenho uma dúvida: isso foi uma ironia do destino, ou um deboche seu?” Lean estava com a cara quente. Virou de volta sem dar direito de resposta ao oponente.
“Lean, pára com...”
“Professora, posso ir ao banheiro?” Lean abafou a voz do outro. A Professora respondeu que sim.
Mário esperou que a professora ficasse de costas e fugiu da sala.
“Pára de me seguir!” Disse Lean assim que Mário o alcançou, mas disse de maneira que só ele ouviria.
“Pára você de fugir de mim!”
“Você é o quê? Piadista de circo?! Comediante? Hein. Primeiro me diz pra eu não te ignorar, depois pra eu não fugir de você. Isso é o quê? Não gosta que eu faça com você o que você fez comigo? É isso?”
“Ah, entendi tudo. É uma vingancinha besta de adolescente! Ele fez comigo eu vou fazer também.” Mario fez uma voz fina e forçada, debochando do outro.
“Não basta? Tudo o que você fez comigo? Quer mais? Quer pisar mais em mim? Pisa. Destrói esse pano de chão.” O pátio da escola era o cenário e o palco do duelo verbal. A escola toda assistia ao bate boca, mas não chegaram a ouvir a última frase de Lean.
“Não se trata disso, seu idiota. Você é quem está dificultando tudo com esse seu joguinho besta e infantil.”
“Infantil?! Infantil é você, que não sabe enfrentar seus problemas de frente. Foge deles. Foge feito um rato. Um covarde.” A palavra “covarde” saindo dos dentes cerrados de Lean foi o suficiente para que Mário avançasse no outro como um animal.
Com ódio no olhar, Mário levou seu braço direito pra trás e o trouxe de volta com toda a força no rosto de Lean. Seu punho fechado acertou em cheio o nariz dele e o quebrou. César caiu no chão e Brutus já estava indo bater mais nele, mas o sangue, vermelho, o fizera parar. Cor da bandeira que ligava um ao outro. Vermelho de paixão ou de pátria. Ferira seu amado. Como? Por quê? Sentia-se uma fera, um monstro.
Lean ficou caído, com o nariz doendo muito e sangrando também. Dessa vez não sentia só o cheiro da terra do pátio da escola, mas o gosto que tinha, e era gosto de vergonha, de humilhação, de raiva, de decepção. Nunca esperara isso.
Mário se deixou cair no chão ao lado do seu amor. Como amantes que dividiam o mesmo leito, os dois dividiam a arena.
Lean fora levado para um hospital e Mário para a coordenação. Agora sim, todos entendiam, em parte, o porquê da distância entre os dois, mas faltava um motivo maior para tudo aquilo, os inseparáveis não podiam ter se separado. Não podiam estar um socando o outro no meio do pátio. Eram muito próximos. Muito íntimos. Muito amigos. Algo grave havia acontecido.

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