quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Capítulo 14 (Último): Ao luar, na prainha.

Estava bem. Seu nariz já não doía, não tinha mais marcas. Olhava-se no espelho e era o mesmo Lean de sempre. O menino magro de sempre com cabelos louros e olhos azuis ainda estava lá, fisicamente sim. Contudo o Lean de antes não era o mesmo de agora. Tudo o que acontecera, de alguma forma, transformara a vida do rei da selva. Ele era alguém mais forte, mais maduro, mais consciente do que o menininho que entrara naquele hospital com o nariz sangrando. Daniel não o tinha transformado de todo, não fizera dele alguém adulto, mas uma criança grande; uma criança grande e anestesiada. Alguém que, depois de furar o dedo, ou outra coisa, na roca de tecer, dorme e com a chegada de um príncipe salvador acorda. Aurora.
Estava deitado na rede na varanda de seu apartamento. Lá em baixo os carros passavam. Não. Não passavam, estavam parados. Engarrafados. Mário e ele, engarrafados. Lean desceu da rede e observou o congestionamento, que já se estendia por toda a sua rua, até a rua da praia. O garoto ficou ali, observando os carros e meditando sobre engarrafamentos.
Como se formavam? Era esquisito entender isso. Talvez um acidente, mas esse não parecia ser o motivo daquele engarrafamento – Lean estava ouvindo FM e não noticiaram nada. Podia ser um semáforo, mas era estranho como três simples luzinhas fossem capazes de parar uma rua tão grande como a sua e pelo visto a Rua da Praia e suas outras perpendiculares. Podia ficar ali, por horas imaginando os motivos de um engarrafamento, mas sabia, por já ter enfrentado vários, que cedo ou tarde, o engarrafamento cedia, jogava a toalha, estiava a bandeira branca e o fluxo do trafego de “intenso”, passava para “bom”. Era a lei natural dos engarrafamentos, todos tinham um inicio e um fim. Todos começavam com as ruas vazias e terminavam com as ruas vazias. As artérias desobstruídas, obstruídas, e desobstruídas de novo. E o coração bombeando o sangue tranqüilamente. Assim é a vida.
Seu engarrafamento com Mário, a dificuldade que estavam tendo em viver o que queriam, chegaria ao fim. E então rumariam, livremente. Voariam, a grandes asas, o vôo condoreiro. Se tinha vindo do pó, e se pra ele retornaria; se não tinha nenhuma importância e no fim de sua vida acabaria como todos os seres humanos da Terra, não tinha nenhuma necessidade de ficar em cima de um pedestal, esperando o mundo se dobrar diante de si. Quem ele era? Quem seria amanhã? Um mortal. Alguém feito pra deixar tudo que construisse para ir para outro lugar, ou para lugar nenhum. Não valia a pena ficar remoendo sentimentos, deixando de viver pra ficar guardando rancores e dissoluções.
Decidiu e discou.
“Alô.” Era a voz dele. Lean gelou. Seu coração queria parar. Sabia que retornaria ao pó, mas não tinha de ser hoje, né?
“M-Mário” Gaguejou.
“Sim, Lean. Sou eu. Como você ta?”
“To melhor e por incrível que pareça, bem melhor agora.”
“Eu também. É bom ouvir sua voz depois de tanto tempo. Me per...”
“MÁ-rio, por favor. Não. Eu liguei pra gente conversar, mas não pelo telefone. Precisamos nos ver.”
“Claro! Onde?! Quando?!”
“Sei lá, mas eu pensei em conversarmos naquela praia escondida que a gente ia quando queria encher a cara. Lá parece ser legal.”
“Tudo bem, mas quando?”
“Hoje. Às 20:00. Pode ser?”
“Claro, Le-ão.” Mário estava um pouco embaraçado.
“Como é bom ouvir você me chamando assim.”
“Melhor ainda poder te chamar.” Do outro lado Lean sorriu. “Que foi? Ficou mudo.”
“Nada. Tava sorrindo. Então ta combinado. Nos vemos lá.”
“Ta certo, leva um pouco de carinho e compreensão. Acho que eu preciso.”
“Não. Vou levar muito amor.” Lean falou rindo.
“Te amo.”
“Eu também, beijo.”
“Muitos beijos.”
Será que tudo se acertaria, agora? Será que a hora do rush daria lugar a calmaria da madrugada? Claro, né? Só o lerdo do Lean pra questionar isso depois do papinho meloso no telefone! Aff! “Obrigado, meu Deus!” Lean olhou pro céu, que começava a perder o Sol.
Lean tomou banho. Aproveitou a água que corria em seu corpo, sentia-a limpando-o, renovando-o, esse era o papel da água, num rio trazer o novo. Vestiu uma T-shirt vermelha, que já fora elogiada por Mário, e uma bermuda de brim preto. Calçou sandálias de borracha. Não penteou o cabelo. Era um leão, sua beleza estava na juba. Não na juba burguesamente penteada, mas na juba rebelde e naturalista, que lhe dava humanidade. Passou na cozinha e pegou uma colher. Uma só. Não precisavam de duas.
Mãe/ Pai (quem ler), estou indo resolver minha vida. Indo atrás do vento que me leva até ele. Não se preocupem, foi tudo um mal entendido. Eu estarei bem ao lado dele. Melhor impossível. Deus estará comigo.
Com amor,
Seu filho, Lean.
P.s.: Esqueci de marcar o dentista do papai. Foi mau!

O bilhete deixado na porta de geladeira com certeza tranqüilizaria os pais quando chegassem e não encontrassem o filho.
Numa padaria perto da praia, que iriam, Lean comprou um pote de sorvete, desses de dois litros. Ficou esperando pelo amado. Não demorou muito. Às dez para as oito, lá vinha ele, o contraventor. Montado numa moto, que pilotava muito bem, mas que não tinha autorização para dirigir. Estava vestido de verde, de novo. Bermuda de tac-tel, e chinelos de dedo também.
“Você e sua moto ilegal!” Lean sorriu olhando aqueles olhos verdes que há muito não via.
“Não quero saber de moto, não. Me abraça!” Mário sentia falta de abraçar o seu anjinho, seu leão, seu magrelinho. Queria abraçá-lo e o apertava forte, como se aquele abraço fosse a única coisa no mundo.
“Não me esmaga, Mário.” Lean tinha a voz abafada pelo abraço do amado, mas queria mais; estava mesmo era fazendo charme. Um beijo no rosto selou o acordo de paz e amor, muito amor, entre os dois.
Foram pra areia, lá se sentaram ainda distantes do mar. Lean tirou o pote de sorvete da sacola que carregava, tirou a colher do bolso lateral da bermuda e deu uma colherada no sorvete.
“A primeira não é nem minha nem sua,” disse apontando a colher cheia. “É nossa.” Dito isso, mordeu, com os lábios protegendo os dentes, metade do sorvete contido na colher e com a própria mão serviu a outra parte a Mário, que demorou longamente para tirar a colher da boca, enquanto olhava arisco para Lean.
“Leãozinho, me perdoa.” Mário olhava muito sério para Lean, que ficou calado. “Eu fui muito... malvado com você. Não respeitei você, só pensei na minha criancice. Queria fugir das responsabilidades e fugi de você. Eu tava com medo. Esperei tanto pra ouvir o que você me disse, que não tive reação se não sair correndo. Fui bobo.”
“O bobo mais lindo. Mais experto. Mais sábio.” Lean não sorria.
“E depois tudo aquilo, né? Que bom que seu nariz ta perfeito.” Mário começara a chorar. “Me perdoa por isso também?”
“Claro, amor. Por tudo. Me perdoa você, por ser idiota e não perceber as indiretas sobre o leão e a selva,” os dois riram, “por chamar você de covarde, você não é isso. É o meu herói. Me perdoa?”
Mario se aproximou mais de outro. As pontas dos dedos da mão direita alisavam os cabelos da nuca de Lean, puxou sua cabeça pra mais perto. E em seu ouvido sussurrou: “Claro que sim, meu anjo. Nunca mais vou largar você.” Olhando-o nos olhos, beijou-o.
Um bejio molhado, quente e cheio de amor. Era o primeiro, o primeiro de muitos. As lágrimas mais uma vez venceram Lean, só que dessa vez não tinha problema, deixou-as escapar, livres, desimpedidas, trânsito da madrugada. Um beijo de vida, de alegria, de tudo. Dos dois. Finalmente! Mário mordeu com os lábios o nariz, antes quebrado por ele, de Lean. E beijava-o. Lean sentia o interior daquela boca que muito estivera em seus sonhos. A lingua de Mário brincava com a de Lean, e sentia seu céu da boca e lambia seus dentes. Um beijo muito calmo. Os dois queria se sentir, aproveitar aquele momento. Lean mordeu, de leve, o lábio inferior de Mário, que sorriu e o olhou com malícia.
Lean deitou na areia. Mário deitou por cima dele, mordeu a orelha que tanto ouvira sua voz de perto, beijou-o no rosto.
“Lean, eu quero você pra mim.” Falou com sua voz calma e doce, como Lean não conhecia ainda, e mordiscava o pescoço do amado.
“Eu quero ser seu, Mário.” Lean não tinha fôlego suficiente.
“Todinho, todinho?” Mário perguntou mordendo o queixo de Lean.
“Todinho e pra sempre.” Lean sorriu perdendo sua mão no negro dos cabelos de Mário.
A areia era o palco, o mar a trilha sonora, a lua o holofote, as estrelas a platéia e o espetáculo eram os dois, mergulhados no mais profundo e real sentido da palavra amor. Um queria o outro mais do que a tudo. Podiam estar num anfiteatro natural, mas não estavam representando. Era vida real. Era amor. Era Lean. Era Mário. Era tudo.
Os olhos verdes e os azuis misturados num só. A pele alva e a morena. Os cabelos louros e pretos. Misturados num só amor. Numa só carne. Numa só alma. Num só infinito.
Os beijos mais apaixonados, mais intensos, mais puros, mais belos que a lua já presenciara, estavam sendo trocados ali, entre os dois. Lean. Mário. Leão. Selva.
“Você é o meu reizinho.” Mario disse entres os dentes enquanto sorria.
“Naum. Você que é o meu.” Lean balançava, negativamente, a cabeça.
“Nem vem! Arruma outra coisa. Quem inventou essa história de rei fui eu. Arruma outra coisa pra me chamar.”
“Então ta. Você? Você é... meu Sol. Mario-Sol. Ilumina minha vida e aquece o meu coração. E mesmo que nuvens me impeçam de ver você, eu sei que por trás delas você brilha. E o Sol, meu amor,” Lean debochava “nada mais é, que o Astro... Rei.” Lean sorriu e mordeu o lábio inferior arisco, zombando de Mário, pois tinha conseguido chama-lo de rei de um jeito ou de outro.
As bocas queriam mais do que simplesmente uma à outra. Queriam o rosto todo; os narizes, as bochechas, os queixos, os olhos, as orelhas, as estrelas. As mãos perdidas pelos cabelos e o aguçado olfato sentia o perfume que emanava daquela união sagrada. Mário correu, na mala de sua moto havia um cobertor – crime premeditado? Pode crer!

Éramos em fim,
Um do outro.
O leão e sua selva,
A selva e seu leão.
O amor ardia em nossos
Corações e almas.
Éramos nós dois
Em um só.
Uma só carne.
Em unidade de espírito.
Nada mais era importante.
A vida poderia ser vivida assim,
Pra sempre.
Não estaríamos perdendo nada.
Só do que o mundo precisava era
Do leão e de sua selva,
Da selva e de seu leão.

Os dois permaneceram abraçados e deitados na areia. A lua banhava-os e era testemunha desse amor, dessa união. Consumada ali, naquela areia, naquele luar. Do alto de seu sublime trono, Deus buscava na terra, com seus bondosos olhos, união tão linda quanto aquela, e pela primeira vez reconheceu que não era capaz de fazer algo. Encontrar em outro casal, de qualquer natureza, tamanho amor, tamanha beleza, era uma missão que o Onipotente não podia cumprir.
“Vamos embora cometendo um crime?” Lean perguntou sorridente quando estavam na calçada. Eram quase quatro da manhã.
“Se é isso que quer saber, sim, vamos de moto. E você vai com a mão aqui.” Falou apontando para a cintura.
“Claro. Não agüentava mais andar na sua moto segurando naquele treco idiota.” Mário riu da ignorância do seu amado para assuntos automobilísticos. Lean batia os dentes por causa do frio.
“Toma, veste.” Mário ofereceu sua jaqueta a Lean.
“Não. E você, vai ficar com frio?” Lean estava vivendo um conto de fadas, pensava.
“Vou, mas eu sou cavalheiro.” E riu.
“Idiota! Me dá isso.” Lean vestiu o casaco rindo.
Como esses dois são piegas! Sorvete, apelidinhos, jaqueta, ai. Um pé no saco de tão meloso. Mas acontece que não posso me furtar a contar os mínimos detalhes do casalsinho, né? Tão bonitinhos...
Mário sentou na moto e Lean o imitou, segurando em sua cintura, deitou a cabeça nas suas costas.
“Só tenho um capacete. Usa você.” Mário disse.
“Não! Ta tudo muito lindo entre nós e não vamos abrir espaço pro Mal destruir isso. O menino que morreu no Rio, o João, tinha marcado seu primeiro gol, em toda a sua vida. E estava feliz por isso. Mas o Mal se incomoda com a felicidade, e conspira para que ela acabe. Não quero dar esse prazer. Eu vou a pé e você vai de moto, devagar, do meu lado, usando capacete.” Lean desceu da moto.
“Ta falando sério, Leão? Cara, volta. Eu vou devagar e ta de madrugada, não tem ninguém na rua.”
“Não. Chega de discutir isso. Eu não quero te perder, e não quero deixar você sozinho. Não, agora, que tudo se acertou com a gente. Anda, liga e vamos. Sete quadras, e eu chego a casa.” Lean permaneceu na calçada enquanto Mário ia, lentamente, de moto.
Quando chegaram ao prédio de Lean, se beijaram. Um beijo de amor, como todos os outros. O leão sentia imenso prazer de ter em si a boca de sua selva, era intimo demais, beijá-la. Suave. Lindo. Os dois beijavam ora de olho fechado, ora aberto, se olhando, se encarando. Mostrando, com os olhos, como era bom estar ali.
Lean devolveu a jaqueta a Mário, que a recebeu de bom grado.
“Amor, vai com Deus.” Lean sorriu.
“Eu vou. Fica com Ele.”
“Eu fico.”
Um último beijo, selou a despedida.
Lean entrou no prédio aos saltos. Estaria ele numa cena do cinema clássico? Ou estaria sonhando? Não. Isso não podia. Não podia estar sonhando. Tinha de ser tudo a mais pura realidade. E era.
O leão deitou-se em sua cama, olhou para o teto, não queria dormir. Queria mesmo era sonhar acordado. Dali pra frente, pertencia a Mário, de maneira instituída.

Me deixaram entrar.
Eu estava vendado
Pelo caminho.
E juro que se o soubesse faria um mapa.
São poucos os que chegam à praia.
E para os que não chegam
Consiste numa simples e fantástica lenda urbana.
Aqui sou feliz.
Aqui somos felizes, ele veio comigo.
Não teria graça sem ele.
Nos demos forças para transpassarmos o caminho.
Aqui o vento não me pega.
Aqui habito os rochedos,
Não fiz casa na areia.
Não envelheço, não trabalho, nem luto.
Apenas o amo.
Eu tenho seus olhos, ele tem os meus.
Que mais podemos querer?
Eu tenho ele, ele me tem.
VER AETERNUM ERAT.

Muitos são chamados à felicidade, mas poucos se permitem escolher. Alguns não saem do casco, outros voltam correndo, outros desistem e deixam casco e tudo. Mas há aqueles, que não temem, contam, dizem, abrem o jogo. Vão á luta. Às ruas reclamar seu direito. E são, enfim, felizes. Sortudos?! Talvez. E nós, que ficamos de fora, olhamos lacrimejantes, esses seres eleitos sendo levados para o paraíso. A vida tem disso, vez ou outra, alguém se dá muito bem. Daí, passamos a contar suas histórias, até que virem lenda.
1-Do latim: A primavera era eterna.

Nenhum comentário:

Postar um comentário