quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Capítulo 13: Você não é bem vindo aqui

O vento do norte bate impiedoso
Queimando as narinas,
Congelando os pulmões.
Cortando a alma,
Machucando o coração.
Desarrumando tudo, fazendo arruaça.
E eu, um móbile solto
À sua mercê.
Queria eu, ser um hiperbóreo.
Livre, distante, feliz.
Isento deste vento que destrói.
Queria viver com eles.
Mas não! Habito o litoral.
Palafita é onde moro.
A mim, chegam por terra, céu e mar.
Em mim, parece o inverno ser eterno.
Primavera? Palavra nova.
Vou consultar o dicionário!

Meu Deus, quanto sangue! Tinha levado uma boa porrada. E de quem, era melhor não comentar. Era triste demais pensar nisso. Pensar nas ofensas, nos olhares de raiva, nas caras fechadas, as testas franzidas, os dentes cerrados, o ódio estampado no suor dos rostos e o soco e o sangue. Doía mais, mais do que o próprio nariz contundido. Doía na alma, no espírito. A vida parecia esvair-se junto com o sangue, que escorria pelas narinas, indo embora, sem se poder apará-la; vazava pelo ladrão.
Lean não podia suportar a lembrança do rosto de seu amado no instante do soco. Como alguém poderia ter, dentro de si, tanto ódio? E Lean sabia bem que era possível, o que ele não queria era admitir que já tivera seu coração corroído pelo ódio uma vez. E sua mente, maldosa, lembrando do que não deve, levou-lhe à varanda de sua antiga casa onde repugnava o pedido de perdão de Levi.
Mas será que Mário estava sentindo por ele o mesmo que um dia ele sentira por Levi? Não, não podia. Mário não tinha o direito de odiá-lo como ele odiara Levi. Tinha sim! Se ele fazia com alguém, qualquer um tinha o direito de fazer com ele. Era bom, pensava Lean, dizer aquelas coisas pra Levi, e odiá-lo daquela maneira, mas sofrer os frutos de tal sentimento não era tão bom assim. Doía demais.
Mas nem mesmo todo esse mergulho em seus sentimentos e a conscientização de que não agira de maneira correta com Levi, que pediu perdão e merecia ser perdoado(merecia?), fez com que Lean esquecesse o que o amor de sua vida lhe fizera. Sabia, agora, que não deveria guardar rancores, mas, assim, tão recentemente, era difícil esquecer. Talvez, chegará um dia em que pense melhor assim como pensara o caso de Levi, e notará que é melhor esquecer tudo. Mas não agora. Doía muito. Não o nariz quebrado, sim isso doía. Mas as dores moral e sentimental eram ainda maiores. E pra essas não tinha nenhum médico; pelo menos nenhum que atendesse num consultório ou numa Emergência. Só o tempo curaria e em muitos casos nem mesmo o tempo. Esse, que cura todas as coisas, às vezes é falho.
Lean pensava muito em ódio. Ódio e ódio e ódio. Mas não era possível odiar Mário. Tinha lá um aborrecimento, tristeza e vá lá uma raiva aqui e outra ali. Contudo não era possível mau querê-lo. Estava triste, ferido. Porém ainda o amava. Ainda sentia em suas veias o amor correr feito sangue, que mesmo tendo sido perdido aos litros, ainda havia o suficiente pra manter as funções vitais. E o que diferenciava o amor que Lean sentia por Mário de seu sangue, era que com o soco, muito sangue tinha se perdido; e amor, mesmo com toda a briga, permanecia intacto, ileso, imaculado.
Lembrava dos momentos juntos na quadra da escola, jogando basquete; o rosto de Mário era lindo enquanto suado. Lembrava de Mário abanando-se no calor com a camisa vestida no corpo, enquanto deixava à mostra a barriga, um pouco fora de forma e linda. O sorriso. Mário ria com os olhos; a forma como ele comemorava uma sexta marcada, sempre corria e abraçava Lean, que fazia o mesmo quando marcava uma. E como eram os melhores, se abraçavam quase o treino todo.
Lembrou-se de como era lindo em todos os momentos. Sua voz, linda, cantando “Close to you”; bêbado pedindo para que Lean não o abandonasse. Chamando-o de “Leão” e falando que seu coração era uma sel... Como assim?!
A ficha de Lean, finalmente, caíra. Eu tinha até vontade de me tornar um personagem do livro e contar pra esse tonto, mas resolvi dar tempo ao tempo e continuar fazendo o que fui chamado pra fazer, contar essa história. E por falar nisso...
Mário o chamava de leão, dizia que seu coração era selvagem e no dia do porre disse que já havia alguém pra governar sua selva. “Meu Deus como pude ser tão tosco?! Quem reina na droga da selva é o leão. Mário me ama!”
Ai, ai, até que enfim!
Como poderia deixar de amar alguém tão maravilhoso quanto Mário? Isso era impossível. Toda a dor da alma, do espírito, da ética, do nariz, da gengiva e até do fura bolo tinha ido embora. Acabara. Só queria olhar nos olhos de Mário e, e... Dane-se o “e”. Queria era vê-lo. Depois era depois. Estava pronto para abraça-lo e dizer-lhe que lhe amava, queria pular em seu colo e lhe encher de beijos.
Na hora das discussões são faladas coisas que nem sempre, os discutandos querem dizer. Dizem, pra sempre ficar por cima na situação, depois se arrependem. Pensam melhor e notam o quão imbecis foram falando aquelas coisas.. E Mário era só mais uma vítima das circunstâncias. Lean o chamara de covarde. Como Mário, que amava Lean, poderia suportar ouvi-lo chamando-o de covarde? Talvez Estevão não suportaria tanto. Mas não estava falando de fé e sim de amor. Puro e simples. Mário não queria fazer aquilo era tudo fruto da raiva, das mágoas, das palavras lançadas como adagas na face. Tadinho do seu amor. Deveria estar sofrendo com tudo isso. Sem noticias do seu leãozinho.
Não estou sentado à direita de ninguém.
Não fiz nada pra merecer esta posição.
Não fui cuspido ou traspassado.
Não me condenaram à morte maldita.
Não tomei chaves das mãos de ninguém.
Não tenho lugar em tal acento.
Não tenho Glória para sempre, amém.
Não tenho voz, então calo.

* * *
O que tinha feito? Essa era a pergunta que corroera a mente e o coração de Mário durante todo aquele dia. Como conseguira? Era Lean. O “Leãozinho”. Idiota! Não podia tê-lo machucado.
Lean tinha razão. Era um covarde! Primeiro fugiu quando ouviu o que mais quis ouvir em toda a sua vida, e agora isso. Como poderia olhar-se no espelho depois de tal atrocidade. Machucara a pessoa que mais importava pra ele. Agora seu amor devia estar chorando, com medo dele. Tinha medo de que o que fizera não tivesse perdão pra Lean. Tinha medo de tentar falar com Lean e o garoto o ignorar.
Se não tivesse sido tão covarde, tão canalha, nada disso estaria acontecendo. Se tivesse ficado naquele dia, em que Lean declarou seus sentimentos, agora, talvez, estariam assistindo a um filme, abraçados no sofá, comendo chocolate. Essa imagem utópica da relação caótica dos dois fazia o estômago de Mário revirar-se. Mas era tudo culpa sua. Um grande idiota! Se não tivesse feito tantas burradas, nada disso estaria acontecendo.
Como estaria Lean? Bem? Mal? Morrendo? Não, morrendo não! Jamais se perdoaria se o outro morresse. O amor de sua vida assassinado por ele. A idéia o fazia tremer.
Mário viu as horas passando pelo celular, minuto por minuto; hora por hora. Seu lençol encharcado de suor e todo franzido do tanto que se virava e revirava na cama. O desespero era grande. Queria fazer alguma coisa, tinha de fazer algo. Mas o quê?
Fechou os olhos e tentou sonhar acordado. Imaginou seu encontro com Lean. Uma loja de roupas era o cenário para a ilusão. Lá os dois se encontravam casualmente e Mário ajoelhava-se diante de Lean e lhe pedia perdão publicamente, pedia que o amasse de novo. Lean respondia que sim, então Mário se levantava e beijava-lhe a boca efusivamente. Os dois não se importavam com a multidão que se aglomerara em volta deles. Naquele sonho só o que importava eram os dois.
Ainda de olhos fechados, Mário viajava pelo mundo de Lean, tentando lembrar do sorriso do amado quando o via, ou quando acrescentava mais um “dez” à sua coleção de notas pra pregar na porta da geladeira de casa. O olhar sonhador de Lean quando descrevia os livros de Jane Austen. A dancinha idiota que ele fazia quando estava muito feliz com alguma coisa. O movimento do vento em seus cabelos. A beleza de seu olhar indagador, a graça de seus olhares de zoeira e de ironia. Lembrava das vezes em que ouviu Lean declamando um poema. De como ficava lindo quando falava inglês, de como pronunciava o “th” em palavras como “through”; mais lindo ainda falando espanhol, onde sua voz parecia de criança. Mas nada era comparado a Lean falando francês, isso lhe dava um charme e elegância, sem iguais. Sua cara de bobo quando alguém lhe fazia uma surpresa.
Dava saudade dos jogos de basquete, das comemorações calorosas das sextas marcadas pelos dois. Da nuca suada e dos cabelos louros suados e grudados na nuca. Da face avermelhada que ele adquiria depois de jogar no sol. Nada melhor do que vê-lo na aula seguinte a de educação física, na carteira à frente. Com o rosto vermelho, com o suor seco e poeira, juntos. Isso conferia a Lean um pouco de humanidade e beleza extraordinárias.
Sentia saudade de inclinar-se para a frente e sussurrar idiotice no ouvido dele, falava qualquer coisa, só queira falar no “ouvidinho” dele. Lean era lindo de qualquer jeito, até mesmo imitando os professores mais bizarros que tinham.
Queria ter em seus braços o seu magrelinho, seu pedacinho de gente, o seu leão. O rei do seu coração. Mário abraçava o travesseiro e beijava-o, chamando-o de Lean e imaginando um momento de amor dos dois. Mas era só sonho, só ilusão. Tudo estava muito, muito longe de virar realidade. Ou ele assim pensava. Estava imaginando Lean correndo e quicando a bola avermelhada de basquete na quadra da escola, e marcando uma sexta de três pontos, correndo para os seus braços para juntos comemorarem.
Mário não queria abrir os olhos, queria ver se pensar no seu anjo o faria dormir tranqüilo, mas alguém em algum lugar do mundo, parecia não querer deixa-lo sonhar. Queria trazê-lo à dura realidade. Seu celular. Não tinha jeito, tinha de atender. Levantou-se e pegou o aparelho na escrivaninha. Não era ninguém, era o despertador anunciando a hora de “acordar” para a escola. Mas não precisava acordar, não tinha dormido. E não iria à escola estava cumprindo suspensão.
Eram seis da manhã. Levantou-se da cama. Seus olhos ardiam. Não dormira nem cochilara. Estava em claro, virado. Tinha tomado uma decisão: resolveria tudo aquilo. Iria ao hospital onde Lean estava.
Tomou banho, fez a barba. Jogou no corpo uma camisa pólo verde, sabia o quanto Lean gostava da cor. Pólo, porque Lean tinha dito uma vez que o modelo caia bem em Mário. Uma bermuda jeans e um tênis comum. Era agora ou nunca. Olharia nos olhos do amado e lhe imploraria por perdão, se necessário. Que se danasse o orgulho próprio. Que se danassem todas as coisas. Era o amor de sua vida que estava em jogo. Não era tempo de ter um coração soberbo, não era tempo de se preocupar com futilidades como vergonha na cara. Diante do que estava em foco, isso tudo era grande balela, grande idiotice. Enfiaria a si mesmo entre as pernas e correria atrás de seu amor.
Mário andou até a parada do ônibus viajou no ônibus desceu do ônibus atravessou a rua dobrou uma esquina para a direita dobrou outra para a esquerda. Entrou no hospital ensaiando como diria o que viera dizer. Não queria parecer pretensioso ou autoritário. Queria que suas palavras fossem polidas e comedidas para que o outro não pensasse que estava ali “botando banca”.
A recepcionista do hospital fora muito simpática com Mário. E logo o garoto estava andando em direção ao elevador que o levaria ao andar onde seu leãozinho estava e lá falaria tudo. Diria o quanto o amava e pediria perdão por tudo. Ele estava andando pelo corredor, quando uma voz feminina chamou sua atenção:
“O que você está fazendo aqui?” Era a mãe de Lean.
Mário percebera o quanto ela estava sendo ríspida, também não era pra menos. Ela estava falando com o agressor de seu filho.
“Eu... eu vim ver o ...” Gaguejou Mário.
“Veio ver o meu filho? Veio ver o tamanho estrago que o seu espírito de medievalismo causou a ele?” Os lábios de Flávia estavam brancos.
“Não, senhora. Eu não...”
“Olha, menino, eu não sei o que deu no meu filho pra se apaixonar por alguém como você. Eu pensava que você fosse um bom menino, mas me enganei. Você sempre foi à nossa casa, e agora isto? Agressão?” Ela gesticulava, fazia caras e bocas e jogava os cabelos louros, exatamente como o filho fazia de vez em quando.
“Me desculpe. Eu errei, eu...”
“Errou. Sim e muito. Bateu no meu filho.” Ela levou a mão ao peito. Mário entendeu que Lean não devia ser chamado de leão só pelo trocadilho do nome, mas também por ser filho de uma autêntica leoa.“Eu mesma não faço isso! Você não tinha o direito. Só por que ele te ama. Tudo bem que não seja a sua praia, ou sei lá o quê, mas não precisava tê-lo machucado. Meu filho é um lerdo. Não sabe brigar. E o que você fez foi uma covardia.” De novo a tal da covardia, parecia ter sido grudada à personalidade de Mário nos últimos tempos.
“A senhora tem razão, sou um covarde. Mas isso eu já sei. Não preciso que me digam. A senhora vai deixar eu ver o seu filho e conversar com ele o que eu tenho pra falar com ele?” Mário estava se cansando. Não queria ficar muito tempo perto da mãe de Lean. Sabia que ela estava de cabeça quente e machucada pelo acontecido com o filho e não queria perder a paciência com ela pra não falar coisas que se arrependeria no futuro. Afinal de contas, se tudo desse certo, ela seria sua sogra o quanto antes possível.
“Não. Você não verá o meu filho. Tenho medo do que você pode fazer a ele. Como você disse, é um covarde. E pode querer maltrata-lo mais.” Ela sabia ferir as pessoas. Era boa nisso. E doía muito. Ouvir aquelas coisas era doloroso. Mas era tudo fruto de seus atos.
“Então, se a senhora me der licença, eu vou embora.” “Sim. Dou toda a licença do mundo! Você não é bem vindo aqui! Você não é bem vindo na vida do meu filho. Vá embora!” As ásperas palavras da mulher acompanharam Mário por todo o caminho de volta até a casa.

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