quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Capítulo 14 (Último): Ao luar, na prainha.

Estava bem. Seu nariz já não doía, não tinha mais marcas. Olhava-se no espelho e era o mesmo Lean de sempre. O menino magro de sempre com cabelos louros e olhos azuis ainda estava lá, fisicamente sim. Contudo o Lean de antes não era o mesmo de agora. Tudo o que acontecera, de alguma forma, transformara a vida do rei da selva. Ele era alguém mais forte, mais maduro, mais consciente do que o menininho que entrara naquele hospital com o nariz sangrando. Daniel não o tinha transformado de todo, não fizera dele alguém adulto, mas uma criança grande; uma criança grande e anestesiada. Alguém que, depois de furar o dedo, ou outra coisa, na roca de tecer, dorme e com a chegada de um príncipe salvador acorda. Aurora.
Estava deitado na rede na varanda de seu apartamento. Lá em baixo os carros passavam. Não. Não passavam, estavam parados. Engarrafados. Mário e ele, engarrafados. Lean desceu da rede e observou o congestionamento, que já se estendia por toda a sua rua, até a rua da praia. O garoto ficou ali, observando os carros e meditando sobre engarrafamentos.
Como se formavam? Era esquisito entender isso. Talvez um acidente, mas esse não parecia ser o motivo daquele engarrafamento – Lean estava ouvindo FM e não noticiaram nada. Podia ser um semáforo, mas era estranho como três simples luzinhas fossem capazes de parar uma rua tão grande como a sua e pelo visto a Rua da Praia e suas outras perpendiculares. Podia ficar ali, por horas imaginando os motivos de um engarrafamento, mas sabia, por já ter enfrentado vários, que cedo ou tarde, o engarrafamento cedia, jogava a toalha, estiava a bandeira branca e o fluxo do trafego de “intenso”, passava para “bom”. Era a lei natural dos engarrafamentos, todos tinham um inicio e um fim. Todos começavam com as ruas vazias e terminavam com as ruas vazias. As artérias desobstruídas, obstruídas, e desobstruídas de novo. E o coração bombeando o sangue tranqüilamente. Assim é a vida.
Seu engarrafamento com Mário, a dificuldade que estavam tendo em viver o que queriam, chegaria ao fim. E então rumariam, livremente. Voariam, a grandes asas, o vôo condoreiro. Se tinha vindo do pó, e se pra ele retornaria; se não tinha nenhuma importância e no fim de sua vida acabaria como todos os seres humanos da Terra, não tinha nenhuma necessidade de ficar em cima de um pedestal, esperando o mundo se dobrar diante de si. Quem ele era? Quem seria amanhã? Um mortal. Alguém feito pra deixar tudo que construisse para ir para outro lugar, ou para lugar nenhum. Não valia a pena ficar remoendo sentimentos, deixando de viver pra ficar guardando rancores e dissoluções.
Decidiu e discou.
“Alô.” Era a voz dele. Lean gelou. Seu coração queria parar. Sabia que retornaria ao pó, mas não tinha de ser hoje, né?
“M-Mário” Gaguejou.
“Sim, Lean. Sou eu. Como você ta?”
“To melhor e por incrível que pareça, bem melhor agora.”
“Eu também. É bom ouvir sua voz depois de tanto tempo. Me per...”
“MÁ-rio, por favor. Não. Eu liguei pra gente conversar, mas não pelo telefone. Precisamos nos ver.”
“Claro! Onde?! Quando?!”
“Sei lá, mas eu pensei em conversarmos naquela praia escondida que a gente ia quando queria encher a cara. Lá parece ser legal.”
“Tudo bem, mas quando?”
“Hoje. Às 20:00. Pode ser?”
“Claro, Le-ão.” Mário estava um pouco embaraçado.
“Como é bom ouvir você me chamando assim.”
“Melhor ainda poder te chamar.” Do outro lado Lean sorriu. “Que foi? Ficou mudo.”
“Nada. Tava sorrindo. Então ta combinado. Nos vemos lá.”
“Ta certo, leva um pouco de carinho e compreensão. Acho que eu preciso.”
“Não. Vou levar muito amor.” Lean falou rindo.
“Te amo.”
“Eu também, beijo.”
“Muitos beijos.”
Será que tudo se acertaria, agora? Será que a hora do rush daria lugar a calmaria da madrugada? Claro, né? Só o lerdo do Lean pra questionar isso depois do papinho meloso no telefone! Aff! “Obrigado, meu Deus!” Lean olhou pro céu, que começava a perder o Sol.
Lean tomou banho. Aproveitou a água que corria em seu corpo, sentia-a limpando-o, renovando-o, esse era o papel da água, num rio trazer o novo. Vestiu uma T-shirt vermelha, que já fora elogiada por Mário, e uma bermuda de brim preto. Calçou sandálias de borracha. Não penteou o cabelo. Era um leão, sua beleza estava na juba. Não na juba burguesamente penteada, mas na juba rebelde e naturalista, que lhe dava humanidade. Passou na cozinha e pegou uma colher. Uma só. Não precisavam de duas.
Mãe/ Pai (quem ler), estou indo resolver minha vida. Indo atrás do vento que me leva até ele. Não se preocupem, foi tudo um mal entendido. Eu estarei bem ao lado dele. Melhor impossível. Deus estará comigo.
Com amor,
Seu filho, Lean.
P.s.: Esqueci de marcar o dentista do papai. Foi mau!

O bilhete deixado na porta de geladeira com certeza tranqüilizaria os pais quando chegassem e não encontrassem o filho.
Numa padaria perto da praia, que iriam, Lean comprou um pote de sorvete, desses de dois litros. Ficou esperando pelo amado. Não demorou muito. Às dez para as oito, lá vinha ele, o contraventor. Montado numa moto, que pilotava muito bem, mas que não tinha autorização para dirigir. Estava vestido de verde, de novo. Bermuda de tac-tel, e chinelos de dedo também.
“Você e sua moto ilegal!” Lean sorriu olhando aqueles olhos verdes que há muito não via.
“Não quero saber de moto, não. Me abraça!” Mário sentia falta de abraçar o seu anjinho, seu leão, seu magrelinho. Queria abraçá-lo e o apertava forte, como se aquele abraço fosse a única coisa no mundo.
“Não me esmaga, Mário.” Lean tinha a voz abafada pelo abraço do amado, mas queria mais; estava mesmo era fazendo charme. Um beijo no rosto selou o acordo de paz e amor, muito amor, entre os dois.
Foram pra areia, lá se sentaram ainda distantes do mar. Lean tirou o pote de sorvete da sacola que carregava, tirou a colher do bolso lateral da bermuda e deu uma colherada no sorvete.
“A primeira não é nem minha nem sua,” disse apontando a colher cheia. “É nossa.” Dito isso, mordeu, com os lábios protegendo os dentes, metade do sorvete contido na colher e com a própria mão serviu a outra parte a Mário, que demorou longamente para tirar a colher da boca, enquanto olhava arisco para Lean.
“Leãozinho, me perdoa.” Mário olhava muito sério para Lean, que ficou calado. “Eu fui muito... malvado com você. Não respeitei você, só pensei na minha criancice. Queria fugir das responsabilidades e fugi de você. Eu tava com medo. Esperei tanto pra ouvir o que você me disse, que não tive reação se não sair correndo. Fui bobo.”
“O bobo mais lindo. Mais experto. Mais sábio.” Lean não sorria.
“E depois tudo aquilo, né? Que bom que seu nariz ta perfeito.” Mário começara a chorar. “Me perdoa por isso também?”
“Claro, amor. Por tudo. Me perdoa você, por ser idiota e não perceber as indiretas sobre o leão e a selva,” os dois riram, “por chamar você de covarde, você não é isso. É o meu herói. Me perdoa?”
Mario se aproximou mais de outro. As pontas dos dedos da mão direita alisavam os cabelos da nuca de Lean, puxou sua cabeça pra mais perto. E em seu ouvido sussurrou: “Claro que sim, meu anjo. Nunca mais vou largar você.” Olhando-o nos olhos, beijou-o.
Um bejio molhado, quente e cheio de amor. Era o primeiro, o primeiro de muitos. As lágrimas mais uma vez venceram Lean, só que dessa vez não tinha problema, deixou-as escapar, livres, desimpedidas, trânsito da madrugada. Um beijo de vida, de alegria, de tudo. Dos dois. Finalmente! Mário mordeu com os lábios o nariz, antes quebrado por ele, de Lean. E beijava-o. Lean sentia o interior daquela boca que muito estivera em seus sonhos. A lingua de Mário brincava com a de Lean, e sentia seu céu da boca e lambia seus dentes. Um beijo muito calmo. Os dois queria se sentir, aproveitar aquele momento. Lean mordeu, de leve, o lábio inferior de Mário, que sorriu e o olhou com malícia.
Lean deitou na areia. Mário deitou por cima dele, mordeu a orelha que tanto ouvira sua voz de perto, beijou-o no rosto.
“Lean, eu quero você pra mim.” Falou com sua voz calma e doce, como Lean não conhecia ainda, e mordiscava o pescoço do amado.
“Eu quero ser seu, Mário.” Lean não tinha fôlego suficiente.
“Todinho, todinho?” Mário perguntou mordendo o queixo de Lean.
“Todinho e pra sempre.” Lean sorriu perdendo sua mão no negro dos cabelos de Mário.
A areia era o palco, o mar a trilha sonora, a lua o holofote, as estrelas a platéia e o espetáculo eram os dois, mergulhados no mais profundo e real sentido da palavra amor. Um queria o outro mais do que a tudo. Podiam estar num anfiteatro natural, mas não estavam representando. Era vida real. Era amor. Era Lean. Era Mário. Era tudo.
Os olhos verdes e os azuis misturados num só. A pele alva e a morena. Os cabelos louros e pretos. Misturados num só amor. Numa só carne. Numa só alma. Num só infinito.
Os beijos mais apaixonados, mais intensos, mais puros, mais belos que a lua já presenciara, estavam sendo trocados ali, entre os dois. Lean. Mário. Leão. Selva.
“Você é o meu reizinho.” Mario disse entres os dentes enquanto sorria.
“Naum. Você que é o meu.” Lean balançava, negativamente, a cabeça.
“Nem vem! Arruma outra coisa. Quem inventou essa história de rei fui eu. Arruma outra coisa pra me chamar.”
“Então ta. Você? Você é... meu Sol. Mario-Sol. Ilumina minha vida e aquece o meu coração. E mesmo que nuvens me impeçam de ver você, eu sei que por trás delas você brilha. E o Sol, meu amor,” Lean debochava “nada mais é, que o Astro... Rei.” Lean sorriu e mordeu o lábio inferior arisco, zombando de Mário, pois tinha conseguido chama-lo de rei de um jeito ou de outro.
As bocas queriam mais do que simplesmente uma à outra. Queriam o rosto todo; os narizes, as bochechas, os queixos, os olhos, as orelhas, as estrelas. As mãos perdidas pelos cabelos e o aguçado olfato sentia o perfume que emanava daquela união sagrada. Mário correu, na mala de sua moto havia um cobertor – crime premeditado? Pode crer!

Éramos em fim,
Um do outro.
O leão e sua selva,
A selva e seu leão.
O amor ardia em nossos
Corações e almas.
Éramos nós dois
Em um só.
Uma só carne.
Em unidade de espírito.
Nada mais era importante.
A vida poderia ser vivida assim,
Pra sempre.
Não estaríamos perdendo nada.
Só do que o mundo precisava era
Do leão e de sua selva,
Da selva e de seu leão.

Os dois permaneceram abraçados e deitados na areia. A lua banhava-os e era testemunha desse amor, dessa união. Consumada ali, naquela areia, naquele luar. Do alto de seu sublime trono, Deus buscava na terra, com seus bondosos olhos, união tão linda quanto aquela, e pela primeira vez reconheceu que não era capaz de fazer algo. Encontrar em outro casal, de qualquer natureza, tamanho amor, tamanha beleza, era uma missão que o Onipotente não podia cumprir.
“Vamos embora cometendo um crime?” Lean perguntou sorridente quando estavam na calçada. Eram quase quatro da manhã.
“Se é isso que quer saber, sim, vamos de moto. E você vai com a mão aqui.” Falou apontando para a cintura.
“Claro. Não agüentava mais andar na sua moto segurando naquele treco idiota.” Mário riu da ignorância do seu amado para assuntos automobilísticos. Lean batia os dentes por causa do frio.
“Toma, veste.” Mário ofereceu sua jaqueta a Lean.
“Não. E você, vai ficar com frio?” Lean estava vivendo um conto de fadas, pensava.
“Vou, mas eu sou cavalheiro.” E riu.
“Idiota! Me dá isso.” Lean vestiu o casaco rindo.
Como esses dois são piegas! Sorvete, apelidinhos, jaqueta, ai. Um pé no saco de tão meloso. Mas acontece que não posso me furtar a contar os mínimos detalhes do casalsinho, né? Tão bonitinhos...
Mário sentou na moto e Lean o imitou, segurando em sua cintura, deitou a cabeça nas suas costas.
“Só tenho um capacete. Usa você.” Mário disse.
“Não! Ta tudo muito lindo entre nós e não vamos abrir espaço pro Mal destruir isso. O menino que morreu no Rio, o João, tinha marcado seu primeiro gol, em toda a sua vida. E estava feliz por isso. Mas o Mal se incomoda com a felicidade, e conspira para que ela acabe. Não quero dar esse prazer. Eu vou a pé e você vai de moto, devagar, do meu lado, usando capacete.” Lean desceu da moto.
“Ta falando sério, Leão? Cara, volta. Eu vou devagar e ta de madrugada, não tem ninguém na rua.”
“Não. Chega de discutir isso. Eu não quero te perder, e não quero deixar você sozinho. Não, agora, que tudo se acertou com a gente. Anda, liga e vamos. Sete quadras, e eu chego a casa.” Lean permaneceu na calçada enquanto Mário ia, lentamente, de moto.
Quando chegaram ao prédio de Lean, se beijaram. Um beijo de amor, como todos os outros. O leão sentia imenso prazer de ter em si a boca de sua selva, era intimo demais, beijá-la. Suave. Lindo. Os dois beijavam ora de olho fechado, ora aberto, se olhando, se encarando. Mostrando, com os olhos, como era bom estar ali.
Lean devolveu a jaqueta a Mário, que a recebeu de bom grado.
“Amor, vai com Deus.” Lean sorriu.
“Eu vou. Fica com Ele.”
“Eu fico.”
Um último beijo, selou a despedida.
Lean entrou no prédio aos saltos. Estaria ele numa cena do cinema clássico? Ou estaria sonhando? Não. Isso não podia. Não podia estar sonhando. Tinha de ser tudo a mais pura realidade. E era.
O leão deitou-se em sua cama, olhou para o teto, não queria dormir. Queria mesmo era sonhar acordado. Dali pra frente, pertencia a Mário, de maneira instituída.

Me deixaram entrar.
Eu estava vendado
Pelo caminho.
E juro que se o soubesse faria um mapa.
São poucos os que chegam à praia.
E para os que não chegam
Consiste numa simples e fantástica lenda urbana.
Aqui sou feliz.
Aqui somos felizes, ele veio comigo.
Não teria graça sem ele.
Nos demos forças para transpassarmos o caminho.
Aqui o vento não me pega.
Aqui habito os rochedos,
Não fiz casa na areia.
Não envelheço, não trabalho, nem luto.
Apenas o amo.
Eu tenho seus olhos, ele tem os meus.
Que mais podemos querer?
Eu tenho ele, ele me tem.
VER AETERNUM ERAT.

Muitos são chamados à felicidade, mas poucos se permitem escolher. Alguns não saem do casco, outros voltam correndo, outros desistem e deixam casco e tudo. Mas há aqueles, que não temem, contam, dizem, abrem o jogo. Vão á luta. Às ruas reclamar seu direito. E são, enfim, felizes. Sortudos?! Talvez. E nós, que ficamos de fora, olhamos lacrimejantes, esses seres eleitos sendo levados para o paraíso. A vida tem disso, vez ou outra, alguém se dá muito bem. Daí, passamos a contar suas histórias, até que virem lenda.
1-Do latim: A primavera era eterna.

Capítulo 13: Você não é bem vindo aqui

O vento do norte bate impiedoso
Queimando as narinas,
Congelando os pulmões.
Cortando a alma,
Machucando o coração.
Desarrumando tudo, fazendo arruaça.
E eu, um móbile solto
À sua mercê.
Queria eu, ser um hiperbóreo.
Livre, distante, feliz.
Isento deste vento que destrói.
Queria viver com eles.
Mas não! Habito o litoral.
Palafita é onde moro.
A mim, chegam por terra, céu e mar.
Em mim, parece o inverno ser eterno.
Primavera? Palavra nova.
Vou consultar o dicionário!

Meu Deus, quanto sangue! Tinha levado uma boa porrada. E de quem, era melhor não comentar. Era triste demais pensar nisso. Pensar nas ofensas, nos olhares de raiva, nas caras fechadas, as testas franzidas, os dentes cerrados, o ódio estampado no suor dos rostos e o soco e o sangue. Doía mais, mais do que o próprio nariz contundido. Doía na alma, no espírito. A vida parecia esvair-se junto com o sangue, que escorria pelas narinas, indo embora, sem se poder apará-la; vazava pelo ladrão.
Lean não podia suportar a lembrança do rosto de seu amado no instante do soco. Como alguém poderia ter, dentro de si, tanto ódio? E Lean sabia bem que era possível, o que ele não queria era admitir que já tivera seu coração corroído pelo ódio uma vez. E sua mente, maldosa, lembrando do que não deve, levou-lhe à varanda de sua antiga casa onde repugnava o pedido de perdão de Levi.
Mas será que Mário estava sentindo por ele o mesmo que um dia ele sentira por Levi? Não, não podia. Mário não tinha o direito de odiá-lo como ele odiara Levi. Tinha sim! Se ele fazia com alguém, qualquer um tinha o direito de fazer com ele. Era bom, pensava Lean, dizer aquelas coisas pra Levi, e odiá-lo daquela maneira, mas sofrer os frutos de tal sentimento não era tão bom assim. Doía demais.
Mas nem mesmo todo esse mergulho em seus sentimentos e a conscientização de que não agira de maneira correta com Levi, que pediu perdão e merecia ser perdoado(merecia?), fez com que Lean esquecesse o que o amor de sua vida lhe fizera. Sabia, agora, que não deveria guardar rancores, mas, assim, tão recentemente, era difícil esquecer. Talvez, chegará um dia em que pense melhor assim como pensara o caso de Levi, e notará que é melhor esquecer tudo. Mas não agora. Doía muito. Não o nariz quebrado, sim isso doía. Mas as dores moral e sentimental eram ainda maiores. E pra essas não tinha nenhum médico; pelo menos nenhum que atendesse num consultório ou numa Emergência. Só o tempo curaria e em muitos casos nem mesmo o tempo. Esse, que cura todas as coisas, às vezes é falho.
Lean pensava muito em ódio. Ódio e ódio e ódio. Mas não era possível odiar Mário. Tinha lá um aborrecimento, tristeza e vá lá uma raiva aqui e outra ali. Contudo não era possível mau querê-lo. Estava triste, ferido. Porém ainda o amava. Ainda sentia em suas veias o amor correr feito sangue, que mesmo tendo sido perdido aos litros, ainda havia o suficiente pra manter as funções vitais. E o que diferenciava o amor que Lean sentia por Mário de seu sangue, era que com o soco, muito sangue tinha se perdido; e amor, mesmo com toda a briga, permanecia intacto, ileso, imaculado.
Lembrava dos momentos juntos na quadra da escola, jogando basquete; o rosto de Mário era lindo enquanto suado. Lembrava de Mário abanando-se no calor com a camisa vestida no corpo, enquanto deixava à mostra a barriga, um pouco fora de forma e linda. O sorriso. Mário ria com os olhos; a forma como ele comemorava uma sexta marcada, sempre corria e abraçava Lean, que fazia o mesmo quando marcava uma. E como eram os melhores, se abraçavam quase o treino todo.
Lembrou-se de como era lindo em todos os momentos. Sua voz, linda, cantando “Close to you”; bêbado pedindo para que Lean não o abandonasse. Chamando-o de “Leão” e falando que seu coração era uma sel... Como assim?!
A ficha de Lean, finalmente, caíra. Eu tinha até vontade de me tornar um personagem do livro e contar pra esse tonto, mas resolvi dar tempo ao tempo e continuar fazendo o que fui chamado pra fazer, contar essa história. E por falar nisso...
Mário o chamava de leão, dizia que seu coração era selvagem e no dia do porre disse que já havia alguém pra governar sua selva. “Meu Deus como pude ser tão tosco?! Quem reina na droga da selva é o leão. Mário me ama!”
Ai, ai, até que enfim!
Como poderia deixar de amar alguém tão maravilhoso quanto Mário? Isso era impossível. Toda a dor da alma, do espírito, da ética, do nariz, da gengiva e até do fura bolo tinha ido embora. Acabara. Só queria olhar nos olhos de Mário e, e... Dane-se o “e”. Queria era vê-lo. Depois era depois. Estava pronto para abraça-lo e dizer-lhe que lhe amava, queria pular em seu colo e lhe encher de beijos.
Na hora das discussões são faladas coisas que nem sempre, os discutandos querem dizer. Dizem, pra sempre ficar por cima na situação, depois se arrependem. Pensam melhor e notam o quão imbecis foram falando aquelas coisas.. E Mário era só mais uma vítima das circunstâncias. Lean o chamara de covarde. Como Mário, que amava Lean, poderia suportar ouvi-lo chamando-o de covarde? Talvez Estevão não suportaria tanto. Mas não estava falando de fé e sim de amor. Puro e simples. Mário não queria fazer aquilo era tudo fruto da raiva, das mágoas, das palavras lançadas como adagas na face. Tadinho do seu amor. Deveria estar sofrendo com tudo isso. Sem noticias do seu leãozinho.
Não estou sentado à direita de ninguém.
Não fiz nada pra merecer esta posição.
Não fui cuspido ou traspassado.
Não me condenaram à morte maldita.
Não tomei chaves das mãos de ninguém.
Não tenho lugar em tal acento.
Não tenho Glória para sempre, amém.
Não tenho voz, então calo.

* * *
O que tinha feito? Essa era a pergunta que corroera a mente e o coração de Mário durante todo aquele dia. Como conseguira? Era Lean. O “Leãozinho”. Idiota! Não podia tê-lo machucado.
Lean tinha razão. Era um covarde! Primeiro fugiu quando ouviu o que mais quis ouvir em toda a sua vida, e agora isso. Como poderia olhar-se no espelho depois de tal atrocidade. Machucara a pessoa que mais importava pra ele. Agora seu amor devia estar chorando, com medo dele. Tinha medo de que o que fizera não tivesse perdão pra Lean. Tinha medo de tentar falar com Lean e o garoto o ignorar.
Se não tivesse sido tão covarde, tão canalha, nada disso estaria acontecendo. Se tivesse ficado naquele dia, em que Lean declarou seus sentimentos, agora, talvez, estariam assistindo a um filme, abraçados no sofá, comendo chocolate. Essa imagem utópica da relação caótica dos dois fazia o estômago de Mário revirar-se. Mas era tudo culpa sua. Um grande idiota! Se não tivesse feito tantas burradas, nada disso estaria acontecendo.
Como estaria Lean? Bem? Mal? Morrendo? Não, morrendo não! Jamais se perdoaria se o outro morresse. O amor de sua vida assassinado por ele. A idéia o fazia tremer.
Mário viu as horas passando pelo celular, minuto por minuto; hora por hora. Seu lençol encharcado de suor e todo franzido do tanto que se virava e revirava na cama. O desespero era grande. Queria fazer alguma coisa, tinha de fazer algo. Mas o quê?
Fechou os olhos e tentou sonhar acordado. Imaginou seu encontro com Lean. Uma loja de roupas era o cenário para a ilusão. Lá os dois se encontravam casualmente e Mário ajoelhava-se diante de Lean e lhe pedia perdão publicamente, pedia que o amasse de novo. Lean respondia que sim, então Mário se levantava e beijava-lhe a boca efusivamente. Os dois não se importavam com a multidão que se aglomerara em volta deles. Naquele sonho só o que importava eram os dois.
Ainda de olhos fechados, Mário viajava pelo mundo de Lean, tentando lembrar do sorriso do amado quando o via, ou quando acrescentava mais um “dez” à sua coleção de notas pra pregar na porta da geladeira de casa. O olhar sonhador de Lean quando descrevia os livros de Jane Austen. A dancinha idiota que ele fazia quando estava muito feliz com alguma coisa. O movimento do vento em seus cabelos. A beleza de seu olhar indagador, a graça de seus olhares de zoeira e de ironia. Lembrava das vezes em que ouviu Lean declamando um poema. De como ficava lindo quando falava inglês, de como pronunciava o “th” em palavras como “through”; mais lindo ainda falando espanhol, onde sua voz parecia de criança. Mas nada era comparado a Lean falando francês, isso lhe dava um charme e elegância, sem iguais. Sua cara de bobo quando alguém lhe fazia uma surpresa.
Dava saudade dos jogos de basquete, das comemorações calorosas das sextas marcadas pelos dois. Da nuca suada e dos cabelos louros suados e grudados na nuca. Da face avermelhada que ele adquiria depois de jogar no sol. Nada melhor do que vê-lo na aula seguinte a de educação física, na carteira à frente. Com o rosto vermelho, com o suor seco e poeira, juntos. Isso conferia a Lean um pouco de humanidade e beleza extraordinárias.
Sentia saudade de inclinar-se para a frente e sussurrar idiotice no ouvido dele, falava qualquer coisa, só queira falar no “ouvidinho” dele. Lean era lindo de qualquer jeito, até mesmo imitando os professores mais bizarros que tinham.
Queria ter em seus braços o seu magrelinho, seu pedacinho de gente, o seu leão. O rei do seu coração. Mário abraçava o travesseiro e beijava-o, chamando-o de Lean e imaginando um momento de amor dos dois. Mas era só sonho, só ilusão. Tudo estava muito, muito longe de virar realidade. Ou ele assim pensava. Estava imaginando Lean correndo e quicando a bola avermelhada de basquete na quadra da escola, e marcando uma sexta de três pontos, correndo para os seus braços para juntos comemorarem.
Mário não queria abrir os olhos, queria ver se pensar no seu anjo o faria dormir tranqüilo, mas alguém em algum lugar do mundo, parecia não querer deixa-lo sonhar. Queria trazê-lo à dura realidade. Seu celular. Não tinha jeito, tinha de atender. Levantou-se e pegou o aparelho na escrivaninha. Não era ninguém, era o despertador anunciando a hora de “acordar” para a escola. Mas não precisava acordar, não tinha dormido. E não iria à escola estava cumprindo suspensão.
Eram seis da manhã. Levantou-se da cama. Seus olhos ardiam. Não dormira nem cochilara. Estava em claro, virado. Tinha tomado uma decisão: resolveria tudo aquilo. Iria ao hospital onde Lean estava.
Tomou banho, fez a barba. Jogou no corpo uma camisa pólo verde, sabia o quanto Lean gostava da cor. Pólo, porque Lean tinha dito uma vez que o modelo caia bem em Mário. Uma bermuda jeans e um tênis comum. Era agora ou nunca. Olharia nos olhos do amado e lhe imploraria por perdão, se necessário. Que se danasse o orgulho próprio. Que se danassem todas as coisas. Era o amor de sua vida que estava em jogo. Não era tempo de ter um coração soberbo, não era tempo de se preocupar com futilidades como vergonha na cara. Diante do que estava em foco, isso tudo era grande balela, grande idiotice. Enfiaria a si mesmo entre as pernas e correria atrás de seu amor.
Mário andou até a parada do ônibus viajou no ônibus desceu do ônibus atravessou a rua dobrou uma esquina para a direita dobrou outra para a esquerda. Entrou no hospital ensaiando como diria o que viera dizer. Não queria parecer pretensioso ou autoritário. Queria que suas palavras fossem polidas e comedidas para que o outro não pensasse que estava ali “botando banca”.
A recepcionista do hospital fora muito simpática com Mário. E logo o garoto estava andando em direção ao elevador que o levaria ao andar onde seu leãozinho estava e lá falaria tudo. Diria o quanto o amava e pediria perdão por tudo. Ele estava andando pelo corredor, quando uma voz feminina chamou sua atenção:
“O que você está fazendo aqui?” Era a mãe de Lean.
Mário percebera o quanto ela estava sendo ríspida, também não era pra menos. Ela estava falando com o agressor de seu filho.
“Eu... eu vim ver o ...” Gaguejou Mário.
“Veio ver o meu filho? Veio ver o tamanho estrago que o seu espírito de medievalismo causou a ele?” Os lábios de Flávia estavam brancos.
“Não, senhora. Eu não...”
“Olha, menino, eu não sei o que deu no meu filho pra se apaixonar por alguém como você. Eu pensava que você fosse um bom menino, mas me enganei. Você sempre foi à nossa casa, e agora isto? Agressão?” Ela gesticulava, fazia caras e bocas e jogava os cabelos louros, exatamente como o filho fazia de vez em quando.
“Me desculpe. Eu errei, eu...”
“Errou. Sim e muito. Bateu no meu filho.” Ela levou a mão ao peito. Mário entendeu que Lean não devia ser chamado de leão só pelo trocadilho do nome, mas também por ser filho de uma autêntica leoa.“Eu mesma não faço isso! Você não tinha o direito. Só por que ele te ama. Tudo bem que não seja a sua praia, ou sei lá o quê, mas não precisava tê-lo machucado. Meu filho é um lerdo. Não sabe brigar. E o que você fez foi uma covardia.” De novo a tal da covardia, parecia ter sido grudada à personalidade de Mário nos últimos tempos.
“A senhora tem razão, sou um covarde. Mas isso eu já sei. Não preciso que me digam. A senhora vai deixar eu ver o seu filho e conversar com ele o que eu tenho pra falar com ele?” Mário estava se cansando. Não queria ficar muito tempo perto da mãe de Lean. Sabia que ela estava de cabeça quente e machucada pelo acontecido com o filho e não queria perder a paciência com ela pra não falar coisas que se arrependeria no futuro. Afinal de contas, se tudo desse certo, ela seria sua sogra o quanto antes possível.
“Não. Você não verá o meu filho. Tenho medo do que você pode fazer a ele. Como você disse, é um covarde. E pode querer maltrata-lo mais.” Ela sabia ferir as pessoas. Era boa nisso. E doía muito. Ouvir aquelas coisas era doloroso. Mas era tudo fruto de seus atos.
“Então, se a senhora me der licença, eu vou embora.” “Sim. Dou toda a licença do mundo! Você não é bem vindo aqui! Você não é bem vindo na vida do meu filho. Vá embora!” As ásperas palavras da mulher acompanharam Mário por todo o caminho de volta até a casa.

Capítulo 12: O abismo


Sou o lado leste.
Sou o lado oeste.
Estamos distante.
Isso me mata.
Há um abismo.
Não há ponte.
Há o vazio.
Há o nada.
Já fomos tudo.
Há o nada.
Éramos um.
Éramos tudo.
Há o nada.
Fomos amigos.
Não há ponte.
Há um abismo.
Há um luto.
Há um vazio.
Há o nada.
Sou o lado leste.
Sou o lado oeste.
Já não somos nada.
Sim somos nada.
E já fomos tudo.

Ninguém entendia nada, ninguém era capaz de entender. Ninguém imaginava nada, ninguém nunca imaginaria. Os dois, os melhores, os companheiros, os cúmplices, os irmãos.
Lean decidiu que não deveria mais se esconder, ele precisava ir a escola, fazer coisas, viver. Não tinha cabimento ficar trancado dentro de casa com um mundo inteiro girando, lá fora. Ele fazia parte dessa locomotiva gigante, que bem ou mal precisava dele pra se mover, afinal era uma das peças.
O coração disparou. O carro do pai parara em frente à escola, e Lean sabia que em minutos estaria... Não saiu do carro. Ficou pedindo aos céus por uma ajuda, que um raio destruísse a escola, para que não tivesse de entrar lá e enfrentar seus medos.
“Filho, você precisa ser forte. Não pode deixar que isso tudo estrague e estagne sua vida. Levante e vá.” Fernando tentava incentivar o filho.
“Eu vou, pai. E fique tranqüilo vai dar tudo certo.” Lean sorriu para o pai e lhe deu um beijo de despedida.
Cada passo dado eram mil batidas no coração, que talvez não fosse agüentar, talvez fosse apelar pra um ataque, um “abc” como já se ouviu dizer. Lean não conseguia andar direito, pernas de bambu foram trocadas pelas suas originais. As habituais escadas da escola foram um obstáculo a mais, mais um, no meio de tantos que enfrentaria naquele dia.
Quando o garoto entrou na sala ficou contente em notar que Mário não estava lá, talvez tivesse evadido pra sempre aquele lugar. Isso seria bom. Não! Nunca! Teria de vê-lo de novo. Teria de olhá-lo de novo. Morreria. Morria só de pensar. Sentou-se no habitual lugar. Nenhum colega perguntou o motivo da uma semana de ausência, sua mãe fizera o favor de ligar pra escola e mencionar uma virose; apenas perguntaram se estava tudo bem. O único que, de fato, sabia o real motivo da longa ausência de Lean era Mário. Bom, isso se o garoto não tivesse contado a ninguém o acontecido no pátio há dez dias.
O horário de tolerância explodiu: sete e quinze. Nada de Mário. E isso contentava e entristecia Lean. Queria adiar o encontro, mas queira vê-lo.
A sirene que anunciava o término da primeira aula soara. E Lean lembrou. Os portões tornam a abrir no segundo horário. Será que... Sim. Os olhos verdes acompanhavam os corredores de acesso à sala 307. Batidas na porta afastaram Lean de seu transe momentâneo. A porta da sala abriu e revelou os olhos mais lindos do mundo, os de Mário.
O garoto fez uma busca rápida pela sala com olhos, como quem procura lugar vago num dia de atraso, mas não era um lugar vago o que ele procurava, eram os olhos azuis de Lean, que ele queria encontrar naquela segunda feira. Um sorriso muito, muito, mas muito tímido mesmo e quase imperceptível se formou e rapidamente se desfez no rosto do moreno no instante em que seus olhos deitaram sobre o loiro. Lean também percebeu o quase não sorriso, e isso iluminou seu dia. Parecia um dia muito normal, a não ser pelo atraso de Mário, pois este sentou-se, como se nada estivesse acontecendo, no mesmo lugar de costume, numa carteira atrás de Lean.
Falou-se de química, história e inglês naquele dia. Mas Lean não anotou nada, não ouviu nada, não viu nada. Seu pensamento era um, apenas um, Mário, que estava tão perto, a meio giro de corpo, e tão distante, a um abismo de alma.
“Lean.” Era voz de Mário o chamando, mas Lean estava com medo, com medo do que viria. A começar pelo fato de não ouvir o habitual “Leão” como tinha se acostumado a ouvir o outro chamar. Lean correu, não olhou pra trás. Felizmente seu ônibus apareceu, fez sinal, entrou e sumiu. Mário ficou lá, com cara de taxo, mas entendeu que tudo aquilo era culpa sua.
Lean estava conseguindo prestar atenção às aulas e era isso que estava fazendo, quando Mário se inclinou de sua carteira e aproximou sua boca do ouvido do outro. Lean pôde ouvir a respiração do seu amor.
“Fugiu de mim ontem? Por quê?”
Lean não olhou pra trás, ao invés disso, mirou sem ver a professora de Geometria, pensando no outro, na carteira de trás; retas paralelas e perpendiculares não faziam sentido nenhum. Depois disso pegou a caneta e continuou copiando de onde parara e reparou que havia borrado o caderno, no instante em que ouvira a voz de Mário.
“Qual é, Lean. Vai me ignorar?”
A isso não era possível continuar passivo, precisava de réplica. Olhou pra trás. Encarou aqueles olhos verdes que tanto amava.
“Eu tenho uma dúvida: isso foi uma ironia do destino, ou um deboche seu?” Lean estava com a cara quente. Virou de volta sem dar direito de resposta ao oponente.
“Lean, pára com...”
“Professora, posso ir ao banheiro?” Lean abafou a voz do outro. A Professora respondeu que sim.
Mário esperou que a professora ficasse de costas e fugiu da sala.
“Pára de me seguir!” Disse Lean assim que Mário o alcançou, mas disse de maneira que só ele ouviria.
“Pára você de fugir de mim!”
“Você é o quê? Piadista de circo?! Comediante? Hein. Primeiro me diz pra eu não te ignorar, depois pra eu não fugir de você. Isso é o quê? Não gosta que eu faça com você o que você fez comigo? É isso?”
“Ah, entendi tudo. É uma vingancinha besta de adolescente! Ele fez comigo eu vou fazer também.” Mario fez uma voz fina e forçada, debochando do outro.
“Não basta? Tudo o que você fez comigo? Quer mais? Quer pisar mais em mim? Pisa. Destrói esse pano de chão.” O pátio da escola era o cenário e o palco do duelo verbal. A escola toda assistia ao bate boca, mas não chegaram a ouvir a última frase de Lean.
“Não se trata disso, seu idiota. Você é quem está dificultando tudo com esse seu joguinho besta e infantil.”
“Infantil?! Infantil é você, que não sabe enfrentar seus problemas de frente. Foge deles. Foge feito um rato. Um covarde.” A palavra “covarde” saindo dos dentes cerrados de Lean foi o suficiente para que Mário avançasse no outro como um animal.
Com ódio no olhar, Mário levou seu braço direito pra trás e o trouxe de volta com toda a força no rosto de Lean. Seu punho fechado acertou em cheio o nariz dele e o quebrou. César caiu no chão e Brutus já estava indo bater mais nele, mas o sangue, vermelho, o fizera parar. Cor da bandeira que ligava um ao outro. Vermelho de paixão ou de pátria. Ferira seu amado. Como? Por quê? Sentia-se uma fera, um monstro.
Lean ficou caído, com o nariz doendo muito e sangrando também. Dessa vez não sentia só o cheiro da terra do pátio da escola, mas o gosto que tinha, e era gosto de vergonha, de humilhação, de raiva, de decepção. Nunca esperara isso.
Mário se deixou cair no chão ao lado do seu amor. Como amantes que dividiam o mesmo leito, os dois dividiam a arena.
Lean fora levado para um hospital e Mário para a coordenação. Agora sim, todos entendiam, em parte, o porquê da distância entre os dois, mas faltava um motivo maior para tudo aquilo, os inseparáveis não podiam ter se separado. Não podiam estar um socando o outro no meio do pátio. Eram muito próximos. Muito íntimos. Muito amigos. Algo grave havia acontecido.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Capítulo 11 - "Lá e de volta outra vez"

Tinha raiva. De si e do mundo. Principalmente dele. Dele não, dele era impossível ter raiva. Em lugar desta ficara a mágoa. Uma ferida fixa em seu coração. Demorara tanto. Esperara tanto. Por isso. Por essa porcaria. Por todo o desprezo. Não, ele merecia valor. Ele era Lean, não qualquer coisa. Não um lixo, nem um tapete. Como se ser "Lean" representasse muita coisa nos dias de hoje! Mas vá lá, ele precisava de auto valorização!

Não conseguia ver-se direito no espelho. Sua visão estava embaçada em virtude das lágrimas que enchiam seus olhos. Chamava-se de burro. Idiota. Besta! Babaca! Imbecil! Era tudo isso. Um monte de nada. Um saco de bosta! Doía muito. Muito mesmo. Alguém cravara uma faca em seu peito e segurando o cabo dela movimentava-a para aumentar a dor. Idiota! Imbecil! Burro! Babaca! Bosta!

Sozinho naquele pátio. Sentindo o cheiro de terra, ao invés do maravilhoso cheiro dele, que talvez nunca mais voltaria a sentir. Uma vez que tinha dito tudo o que guardou por quase três anos, estaria cada vez mais longe do amigo, não mais perto a ponto de sentir seu cheiro, seu hálito, o odor de suor e camisa no fim da aula de Educação Física, o cheiro do cabelo dele. Seu sorriso, de "vai ficar tudo bem", seu olhar de compreensão, seu olhar de carinho, seu olhar de tudo. Pra tudo ele tinha um olhar e Lean os entendia e decifrava e era capaz de descrevê-los -mas no momento em que mais precisara decodificar aqueles olhos verdes, fugira deles. A voz firme que aquela boca linda produzia. Queria-a. A pele que o Sol visitava, os cabelos que os ventos faziam dançar. As mãos, a parte dele, que Lean mais sentiu. Em apertos inocentes Lean a sentia e sentia vontade de beijá-la. Tudo isso estava perdido.

Não seria melhor não ter contado? Ter ficado e guardado pra sempre o que sentia? Se o tivesse feito não sofreria, agora. Teria tudo como antes. O teria como amigo, não era com isso que sonhara, mas era melhor do que nada. A megera da sua avó dizia: "Mas vale um na mão, do que dois voando". E ela tinha razão, a velhaca. Era melhor ter o seu amigo – e essa palavra fazia doer – do que não ter nada. Era melhor estar perto e calar-se, humilhando-se, mantendo-se calado só pra estar junto, só pra vê-lo de perto, só pra senti-lo, só pra ser amigo, só pra ser dele. Assim, quietinho, em silêncio, Lean foi dele. E poderia, sim, viver o quanto fosse possível, ao lado dele, e em silêncio. Esquecera do orgulho; era capaz de se submeter ao silêncio para não perdê-lo. Mas era tarde, até pra isso.

Era sexta-feira. Lean estava deitado em sua cama, com os olhos inchados e a cara vermelha. E depois deste desterro, um toc-toc na porta. Era ele. Mostrou-se Daniel, o sacerdote que iniciara Lean, que o batizara. Como estava bonito, agora com dezenove anos.

Daniel entrou no quarto e fechou a porta, à chave. Sorriu para o primo, ali deitado e notou seu estado.

"Por que chora? Emoção por me ver?" Daniel, falou com o mesmo tom de sempre. De superioridade. De virilidade. De sarcasmo.

"Não estou chorando. Acabei de acordar. Como você ta?" Lean tentou mudar o rumo da conversa.

"Vou bem. E você aqui no Rio, o que anda aprontando, hein?" Daniel sentou-se na cama, ao lado do outro.

"Nada. Não apronto nada. E você, continua desinocentando menininhos?"

"Meninos e meninas. Mas não são crianças. Não se preocupe. São bem velinhos, já. E sabem o que querem."

"Então você só dá mais um empurrãozinho..."

"Sabe como é, né, primo? Você sabe bem como funciona." E riu. "Não vai dar um abraço no seu primo? Faz muito tempo que a gente não se vê, sabia?"

Lean sentou-se na cama e abraçou o primo. Aquele abraço tinha um gosto bom. Era bom abraçá-lo, o seu primeiro. Daniel o conhecia bem. E por mais que fosse um traste, era ele. Era Daniel e não qualquer um. Ele sabia ser carinhoso com suas presas. O viril beijou o menino venusiano no rosto, um beijo demorado. Sabia que algo chateava seu primo. Fez-lhe carinho na bochecha. Lean sentia-se bem, ali, com Daniel, que o deitou na cama de novo e deitou-se ao seu lado.
"Primo, o que você tem? Quem te fez mal?" Daniel alisava os cabelos louros do primo e beijava sua testa. Ali, por incrível que pareça, Lean sentia-se seguro.

"Nada. Só problemas meus. Internos. Manutenção mesmo." Mentiu.

"Se tiver algum prevalecido fazendo mau a você, meu priminho, me fala. Eu arrebento a cara dele. Sabe o que eu fiz com o idiotinha do Levi, né? Ninguém mexe com você, viu?" E abraçou o primo, como muitas vezes tinha feito. Muitas.

Lean sentia-se bem. Era bom estar ali, outra vez, de novo. Esquecera-se de como era bom estar nos braços de Daniel. Sentir-se dele. Percebeu que era seu porto seguro. Estar ali com o rosto afundado no peito do primo. Lean o abraçava e esquecia de tudo. Tudo não. Um certo Mário rondava sua mente, passeando com seu sorriso e olhos de selva. Marcando seu caminho com migalhas de pão. Numa terra em que pássaros eram estritamente carnívoros.

Os dois saíram. Daniel queria conhecer o Rio. E Lean, como bom carioca que se tornara, mostrava a maravilhosa cidade para o sul-rio-grandense. Lean tinha se esquecido de como Daniel era uma pessoa agradável, se acostumou a lembrar do primo como um coiote fronteiriço somente, mas ele era mais do que isso, era legal.

À noite, na hora de dormir, não dormiram.
Procurando em outros braços, teus abraços,
Me entreguei ao que chamam de anestésico.
Sim, a minha dor pude adiar.
Mas a ferida não foi fechada.
Anestesia alivia, não cura.
Morfina, para mim, foi meu primo, naquele dia.

Lean, abriu os olhos, de manhã, e achou estranho não ter seu primo do seu lado na cama. Olhou pro lado e viu que Daniel estava deitado na cama de puxar ao lado da sua e também estava acordado.

"Pensou que eu tinha ido embora, primo?" Falou sorrindo, como sempre. "Não tão fácil, só vim pra cá pros seus pais não virem a gente. Eles não sabem de nada, né?"

"Não. Não contei pra eles. Nunca falei nada. Eles devem imaginar que eu não seja mais virgem, mas não desconfiam de você comigo. Eles já saíram. Volta pra cá." Lean puxou o braço do primo.

Queria se afogar em Daniel. Era bom. Escapar da vida, da dor, de Mário. A única coisa impossível era escapar de Mário. Daniel foi, ficou com o outro e o abraçou.

"Vim em boa hora, né Lean?" Daniel olhava nos olhos de Lean.

"Como assim?" Fez-se desentendido.

"Eu acho que você não ta bem." E estava certo.

"Amor não correspondido." Lean contou a Daniel o ocorrido.

Era ruim, muito ruim contar aquilo. Aquela derrota.

"Ele é um idiota, Lean", sentenciou Daniel. "Não vale a pena, primo."

Ouvir aquelas coisas era pior do que falar mil vezes o acontecido. Lean não gostou de ouvir Daniel chamando Mário de idiota. E valia sim, valia a pena, ainda. Não queria acreditar que teria um fim. Na verdade não teria um fim, não tivera um começo, como pode haver um fim?

Capítulo 10 - Biblioteca, o asilo

Refugiados entre as estantes de livros empoeirados, velhos e mofados, estavam os assustados, arregalados e lacrimejantes olhos de Mário. Ele estava nervoso, seu coração brincava de carnaval, e a quarta feira parecia não querer chegar. Como aquilo tudo era possível? Por quê? Era Lean quem estava lá. Era ele. Mário não entendia porque tinha feito aquilo se tudo o que ouviu era...Teria sido medo? Idiotice, bobeira? O que o fez sair de lá, deixando o seu amigo? Como estaria Lean, agora?

Não reagiu bem. Deveria ter ficado, ouvido o que o outro tinha pra dizer. Ouvir tudo. Mas a covardia tomou conta dele. Ao seu lado estavam Dorothy, o cachorro, o homem de lata e o espantalho, juntos faziam uma equipe perfeita, peregrinando pelos tijolos de ouro.

Andou pela biblioteca sentindo-se um saco de esterco, um parasita, alguém que não foi. O que ficou parado. Sem tomar a canoa, sem entrar no rio, sem buscar a margem terceira.

Da prateleira dedicada à Literatura Espanhola, tirou um livro no qual se encontrava o poema que mais gostava em toda sua vida. Leu as palavras que tanto bem conhecia:

"Perdi-me muitas vezes pelo mar, como me perco..." As palavras de Garcia Lorca faziam com que se lembrasse de Lean, seu melhor amigo. Os livros, nas prateleiras, eram sua platéia. Seu público não o aplaudia, não compactuava com sua atitude infame e covarde. Os livros que ali estavam apontavam suas páginas para ele, recriminando-o; seus títulos olhavam-no fixamente, e suas palavras o insultavam.

As lágrimas eram o Corifeu daqueles que diziam: "Covarde! Não se abandona um amigo!" Deixou-se escorregar pela parede gelada do lugar, até cair no chão. Quedado, paralisado, pronto pra virar geléia.

De onde menos se poderia esperar: um espelho. Desses de mão, caído entre os livros. Estaria, por aquela biblioteca, Hermione Granger fugindo de algum basilisco? Não, não estava. E o próprio espelho, que para a bruxa servira de refúgio e socorro, para Mário servia de basilisco. Feria-o de morte. O que via nele não era agradável, ora medonho, ora acusador. Via-se a si próprio, via sua imagem. De um covarde. E por outro lado acusava-se com olhos malignos, petrificadores, assassinos.

Capítulo 9 - Abrindo o jogo - Mário

Eram meio dia e alguma coisa, estávamos nós dois, Mário e eu, sentados a uma mesinha de pedra no pátio da escola. Estava deserto. Naquela hora, o turno da manhã já tinha ido embora e o da tarde ainda não tinha entrado. Nós ficamos lá nem lembro o porquê. Mário tava falando umas besteiras sobre Gramática. Coitado. Não entendia nada de nada nesse assunto. Ele estava com medo de ficar reprovado por que sei lá o quê, e também porque a professora Márcia Leite não ia muito com a cara dele. Ele falou muita besteira, e meu pensamento voava dali e pra li ao mesmo tempo. Eu pensava em Mário, mas não nas idiotices que ele falava. Pensava nele, nos olhos, e no quanto eu queria vê-los apenas a distância de um centímetro dos meus, enquanto nossos lábios se amassem.

Pensava em seu coração, se ele um dia bateria por mim. Queria que esse dia fosse agora, queria que ele me amasse, que ele sentisse por mim apenas uma parte, 1/1.000.000 avos do que eu sentia por ele. Assim ele me amaria demais, de forma que não suportaria. Queria que fosse meu, de mais ninguém. Ninguém o amava como eu. Tenho certeza. Mas meu amor era feio. Minha forma de amar não protagonizava a novela perfeita. Não era bonita, e nem era abençoada na Igreja. Eu não podia amar, esse direito me havia sido roubado. Será que teria de morrer com aquilo preso na garganta?

As horas correm.
Eu não entendo porque o tempo passa.
Passa e passa.
E eu aqui, calado, mudo.
Inércia!
Quem passou cola em meus lábios?
Quem comeu minha língua?
O meu gato não a queria.
Como posso saber?
Nunca perguntei.
Idiota!
Pelos meus tornozelos,
Sinto passar a agonia
E vem discorrendo pelas minhas pernas,
Joelhos e cochas.
Fazendo os meus ossos tremerem.
Sinto-a na barriga,
Embrulhando-me o estômago.
O embrulho foi para o coração,
Lá virou aperto,
O que fez tremer o corpo.
Foi parar no cérebro,
E lá virou certeza.
Voltou ao chacra,
E lá ação.
Subiu a garganta,
Às pregas vocais,
Os lábios se abriram
E a língua dançou:
—"Euteamo."

"Quê?" Ele olhou pra mim.

"Eu te amo!" Fui firme em olhá-lo.

"Como assim? Você me ama?"

"Amo. E sei que não é normal, pra você..." virei me de costas, tinha vergonha de encará-lo. "Eu não entendo isso. Simplesmente amo você, amo demais e não posso parar. E nem quero. Sabe que às vezes até tenho vontade de chorar?! Sei que isso não é normal. É estranho um menino apaixonado por outro menino. Mas pra mim não é... O que me consola, é saber que o Cupido não escolhe suas vítimas; e ele me feriu de você. Por favor, me entenda..." Tomei coragem, não sei de onde a tirei, para olhá-lo. E ele... Ele não estava mais lá.

Eu estava sozinho, sozinho. Foi impossível conter as lágrimas. Elas eram teimosas: migraram dos meus olhos para o meu rosto e chão. Debrucei-me sobre a mesinha de pedra na minha frente, ela estava fria, minha alma estava fria; com o rosto enfiado entre os braços chorei, abafei meu choro, derramei minhas lágrimas.

Aquilo não era humano. Por mais que não me amasse, que me odiasse até, mas me ouvisse e tivesse a dignidade de me dizer não. Mas não era possível odiá-lo. O amor corria em minhas veias ainda, e coagulava. Ardia-me o peito em amor. Tudo o que eu queria era olhar nos olhos dele. Talvez se eu não tivesse sido tolo, ele teria ficado. Se eu não tivesse dado-lhe as costas, ele poderia estar me beijando. Se eu não tivesse lhe falado nada, ele estaria do meu lado, como bons amigos que somos. Ainda o somos depois deste falimento?

Eu queria vê-lo. Ver seus lábios, sentir seu cheiro, tocar seu braços, ouvir o ranger de seus dentes. Eu queria amá-lo. Por meu amor eu seria capaz de tudo, até de me humilhar novamente. Eu queria ser dele. Não queria que tivesse ido embora. Eu o queria ali, ao meu lado. Esse era o lugar dele. Eu queria ser dele, nem que fosse por apenas uma noite. Eu seria capaz de me rebaixar a tanto e de novo...

A sirene tocou, dentro de alguns minutos o turno da tarde estaria, em peso, no pátio. Eu não quis compartilhar minha cara inchada com eles, levantei-me, fui-me de lá.

* * *

Em sua cama, Lean chorou o choro dos justos, dos tristes e dos desesperados. Queria matar seu travesseiro, companheiro de todas as horas. Poderia matar alguém. Extravasar, que fosse. Poderia matar-se a si mesmo. Acabar de vez com sua vida. Negar-se o direito de viver, pois a vida lhe foi dada e ele não soube vivê-la. Ainda a merecia?

Lean mudou de posição na cama e seus olhos foram direto a uma fotografia na qual Mário o beijava no rosto, e Lean olhava para a máquina sorrindo. Respondida a pergunta? Sim, merecia! Merecia a vida como uma criança que sai do ventre de sua mãe. Tinha o que buscar, tinha um porquê de viver. Tinha Mário. Não, não tinha nada. Nada, nada. Amou o travesseiro. Acreditou ser ele, Mário o amamdo. E chorou mais.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Desculpas

Bom, pessoas que lêem aqui, eu tenho de me desculpar e tal. Fiquei sem Internet e distante de tudo. Aff! Não dá pra ser feliz sem Internet! Não mesmo. Mas o carinho de uma amiga me fez dar um jeito e voltar a postar aqui. Bjo, Nat! Espero que você aproveite, e não só ela. Mas voltando a ela, outra vez, devo desejar que o barco não afunde. Que os marinheiros nos salvem do afogamento! rsrs. Se é que ela me entende. Sim, entende! Bjos a todos, e vamos em frente!
Ah, os novos capítulos são o 7 e o 8. Se envolvam, Lean merece nosso carinho!

Com carinho, o contador.

Capítulo 8 - Private

Era manhã de sábado, os amigos do colégio estavam prestes a se reunirem na casa de Lean para uma festa de confraternização pelo fim do ano letivo, que se dera na última sexta feira. A turma terminara, agora, a segunda série do ensino médio. Era um tempo de festa, é claro, mais um degrau, mais uma vitória.

A private teve inicio à medida em que os amigos foram chegando e por volta das vinte horas todos já estavam lá. O pai de Lean estava viajando a serviço da Marinha e sua mãe tinha ido para o Rio Grande do Sul visitar a família, ou seja, estavam todos livres. E não demorou muito para aquelas cobras ganharem asas e voarem alto: bebidas alcoólicas começarem ser ingeridas por aqueles jovens de apenas dezesseis anos. Lean prezou sua sobriedade, sentia em si o peso da responsabilidade de ser o anfitrião daquela festa; a casa era sua, e precisava manter o controle.

"Lean, cara, eu preciso de você. Só você pode me ajudar," Fernandinha puxou Lean pelo braço e foi com ele até um canto da sala, um pouco desconcertada ela estava.

"O que foi, amega?" Perguntou Lean, descontraidamente enquanto fingia dançar, balançando a cabeça e os ombros.

"Eu to muito afim do Mário, muito afim mesmo. Ele é um gato e tem muito tempo que to afim dele." Ela olhava atenta pra Lean. "Quebra essa pra mim, dá uma idéia nele, por favor, Leãozinho. Vai lá. Ele é teu amigão." A última frase da amiga tivera o efeito de uma espada, que empalava Lean sem piedade. Ele era seu amigo, "amigão". Não era nada além disso. Ela ainda o chamara de Leãozinho, só quem o chamava assim era Mário. Lean ficou um pouco tonto e perdido, isso não escapou dos olhos de Fernandinha. Depois de roubar um pouco de ar infestado das fumaças dos cigarros de baile, com cheiro de álcool e gente suada de tanto dançar, Lean, falou:

"Tudo, bem. Eu falo com ele." Lean pensou que nunca mais diria algo tão pesaroso quanto... Mas aquilo era pior, dizer pra sua amiga que a "colocaria na fita" do amor da sua vida doía demais.

Era muito altruísta, era muito Isabel, e não queria ficar por aí deixando a marca de uma, nem de duas, nem de cinqüenta lágrimas.

Caminhou até o amigo, no caminho, Verônica não lhe estendeu a toalha, nem Simão lhe ajudou com o fardo. A via foi longa. Era triste, entregaria, em breve, seu ouro nas mãos da pirata. Não tinha escolha, deveria ser aquilo, ou contar a ela que era perdidamente apaixonado pelo garoto.
"Már-io, ouve," uma lágrima abusada e desobediente, como sempre eram as lágrimas, escapou da prisão dos olhos e se aventurou pela face do menino.

"Leão, por que ta chorando? O que foi?" Mário pegou na mão do amigo e o levou até a cozinha, onde não havia ninguém. Sentou-o numa cadeira, sentou-se em outra. "Fala, o que aconteceu?"

"Nada," e forçou um riso. "É que eu... lembrei da festa. Essa festa me fez lembrar da despedida dos meus amigos pra mim, quando vim pro Rio", Lean enfiava os dedos na cabeleira loura, como costumava fazer, quando estava nervoso. "Mas o que eu quero te dizer," pediu a Deus em pensamento que o ajudasse, não podia demonstrar o quanto sofria sem ter de entregar os seus sentimentos. " É que a Fernandinha me disse que ta afim de você e pediu para eu... pr’eu..." As lágrimas tentaram de novo organizar um motim e fugir de sua prisão, mas outra vez o poder divino repreendera uma rebelião.

"Ela pediu pra você...?"

"Pra eu te dá o papo, entende. Ela quer ficar contigo." O rosto de Mário enrijeceu.

"E isso te entristece assim?" Perguntou Mário, seu rosto, agora, tinha um "quê" de esperança.

"Não!" Deus não impedira as lágrimas, apenas retardou sua partida, para que viessem no momento certo. "Eu já disse que é por causa da... da festa de despedida dos meus amigos pra mim." As lágrimas eram feitas de balé, tango e carnaval, dançavam livres pelo pista, confessando no dance floor, a face de Lean. E mais dedos nos cabelos louros.

"Olha pra mim, Leãozinho. Primeiro, não chora. Saudade é uma coisa boa." Mário secou as lágrimas do rosto de Lean. Compreensão e dúvida e um pouco de frustração no rosto do moreno.

"Segundo, eu quero que você diga a ela, que não rola, pois... tem alguém, alguém que manda no meu coração, que manda aqui," apontou pro peito. Olhando firme nos olhos de Lean. "Eu não quero abrir minha selva pra mais ninguém, só uma pessoa tem a chave, e essa pessoa é... É muito especial. E se meu coração é uma selva, essa pessoa tem acesso ao trono. Diz a ela que não dá, eu pertenço a outrem." Mário olhou nos olhos de Lean, como se tentasse passar uma mensagem em morse, que não foi captada, a base receptora estava desligada. Mário ficou olhando as costas de Lean, que agora se distanciava dele.

Feito um pombo, Lean levou a mensagem à Fernandinha ainda desconcertado de todo.

"Ele disse que não dá, Fernanda. Ele diz que tem outra pessoa." Disse Lean de cara emburrada. Fernanda percebeu isso, segurou na mão dele."

"Lê, eu não queria ficar com Mário. Desculpa eu fui infantil." Ela parou de falar, olhou pro lado aflita. "A gente pode sair daqui?"

Os dois foram pro quarto de Lean, e Mário viu aquilo, ficou de lado, como quem não pode participar e se viu pegando mais um copo de hi-fi. Lean fechou a porta, Fernandinha estava sentada em sua cama, o garoto puxou uma cadeira e sentou de frente para ela.

"Fala." Disse Lean diante do silêncio da amiga.

"Eu tava fazendo um teste." Ela evitou os olhos dele. "Eu queria ver sua reação ao saber que eu queria ficar com o Mário," mordeu o lábio inferior envergonhada. "E pra ser sincera, eu percebi que não foi das melhores, você vacilou. Parecia transtornado."

"Mas, onde você queria chegar com isso, Nanda?"

"Eu queria ter certeza de uma coisa," e olhou bem dentro dos olhos de Lean. Pronto, ela conhecia seu segredo, será que tinha dado bandeira? Fernanda sabia de tudo...

"E o que isso quer dizer pra você?" Perguntou um Lean de olhos arregaladas temeroso da resposta.

Fernanda se aproximou muito, e bem rápido, de Lean, que sem poder prever o que viria, foi surpreendido por um beijo. Beijo por beijo, não era tão diferente. Bocas são iguais, no fim das contas. Não concordam em gênero. E Lean respirou de olhos fechados tentando digerir o ocorrido enquanto era atentamente observado pela aflita Fernanda. Ele abriu os olhos incrédulo, e um pouco de alívio se apossou dele; estava seguro, pelo menos.

Ele não falou nada. Percorria seu cérebro na tentativa de encontrar palavras e mesmo que tivesse decorado um bom dicionário, julgava-se incapaz de encontrar uma adequada.
"Lean?! Fala alguma coisa."

"Nanda, isso é muito estranho. Eu nunca pensei em você desse jeito." A menina fechou os olhos, arrependida por colocar tanto em jogo, e além disso: perder. "Você sempre foi minha amiga, e é assim que gosto de você. Eu... eu sinto muito."

"Eu é que fui idiota. Fiz joguete com você e com o Mário só pra descobrir uma coisa que eu podia ter perguntado. Imagina se o Mário aceita. O que eu ia fazer?!" E riu débil de si mesma. "Me desculpa, Lean."

"Tudo bem, amiga." Lean segurou no braço dela.

"Mas uma coisa ainda me intriga," ela levantou os olhos . " O que te deixou tão inquieto nessa história toda?"

"É que... que," Mais mentiras viriam? Não! Tava cansado delas. "Eu gosto do Mário. Eu o amo. E é muito ruim ter que "chegar" em quem você ama pra outra pessoa."

Fernanda parou chocada, o rosto estampava choque e perdia a cor, assim também os lábios.

"Você é gay?" A expressão era de nojo no rosto de Fernanda.

"Sim." A garota, de negra, estava branca feito esta folha de papel na qual eu escrevo. E tinha o olhar fixo em Lean; não porque quisesse, mas por estar estatelada. "Nanda..." tentou o garoto colocando a mão no cabelo da amiga.

"Lean, não me toca!Eu não quero."

"Eu pensava que não fosse dada a discriminações."

"E não era. Até acontecer comigo. Eu não discrimino assassinos, nunca mataram ninguém da minha família. E não discriminava gays, até descobrir que o garoto, que eu amo, é um deles. Por que você deixou que eu me apaixonasse? Por que não impediu isso?! Você devia ter..."

"A culpa é minha?!" Lean levou a mão ao peito. "Ei, eu nem fazia idéia do que você sentia. Isso é neurose sua."

"Neurose?! É você que tem um distúrbio, aqui, Lean. Não eu. Eu sou normal. Uma pessoa normal. Nasci como eu sou. Não mudei. Não virei o lado. Você que tem neuroses, distúrbios, problemas, querido. Você é viado. E isso dói, Lean! Como eu não percebi antes?! Claro! Você e o Mário. Leãozinho pra lá, mariquinha pra cá. Hum!" Ela debochava. "De namorinho os dois. Justo eu, tão esperta..."

"Cala a boca e não fala merda. Você já falou um monte num espaço muito curto de tempo. Não há nada entre o Mário e eu. Absolutamente! Eu gosto dele e isso é tudo; ele nem sabe disso. E espero quer continue sem saber."

"Não se preocupa, não." Ríspida, ríspida. "Eu nunca vou falar nada. De gente como você só quero estar bem longe," e saiu do quarto.

Lean olhou no relógio, e viu que era a hora dos sonhos serem desfeitos, da carruagem virar abóbora. Abriu a porta do quarto que dava para a varanda, uma vez nela, sentou-se no chão. Da e pela grade olhou os poucos carros que se movimentavam lá em baixo. Estava muito confuso. Muita informação; ia explodir o "HD". Mário gostava de uma menina e Fernandinha era apaixonada por ele, Lean; mas agora parecia odiá-lo. E ainda o beijo, que não era diferente demais. Era bem parecido até... E toda a repulsa da amiga. Lean pensou que não poderia mais chamá-la assim. E tudo tinha acabado, existia uma menina no coração de Mário. Ele era apaixonado por essa menina, quem seria ela? Ela manda nesse coração. Parafraseou Lean, a sentença, como se estivesse numa missa e coubesse a congregação repetir aquelas palavras: "Ela manda nesse coração." Pessoas apaixonadas, às vezes, têm a feia mania de jogar "resta um", "paciência" e montar "quebra-cabeça".

Olhou pro céu, tinha vontade de voar. De ser livre, de não estar mais ali, de ir embora para um lugar melhor. Um lugar onde o Cupido não o pudesse ver. Engraçado era que, mesmo depois de anos e anos fazendo a mesma coisa, Cupido não ficou com tendinite! Queria sair dali. Queria ser livre. Queria os pastos verdejantes. Queria deitar-se no colo de Deus, ir dali para um melhor lugar.

Olhou pros braços. Eram asas, agora. O vento batia em sua face, vinha convidá-lo para um passeio em suas asas, mas um brusco trovão acabou com o transe, trazendo, Lean de volta à varanda de seu apartamento. "Xô!" Disse pra si, espantando fantasmas.

A sala da casa de Lean estava lotada de gente bêbada; os colegas de classe levaram alguns convidados, o que aumentou o número de jovens alcoolizados da festa. O anfitrião não tinha clima de festa mais e ninguém se importava com isso. Ninguém queria saber dele. Só queriam mesmo era um lugar sem pais para beber e fumar cigarros de baile escondido.

A lua foi perdendo o brilho, e assim chegava a despedida de muitos colegas. Eram três horas da manhã, quando todos já tinham ido embora. E Lean ficou se perguntando onde estaria Mário, não o tinha visto desde a conversa na cozinha. Parecia ter ido embora sem nem se despedir dele. Como assim?! Não fazia sentido. Eram amigos e não tinha acontecido nada de errado entre eles. Talvez Mário tivesse ido embora com a menina que manda em seu coração. E sabe lá Deus onde estariam ou o que estariam fazendo agora. Será que acontecera alguma coisa na casa do amigo, que o fizesse ter ido embora tão assim, às pressas?

Lean tinha acabado de trancar seu apartamento, e estava dando uma última olhada pela casa pra ver se tinha alguma coisa quebrada, vômito, enfim, queria fazer um balanço geral da private. E foi assim que, caído atrás do sofá, encontrou Mário. Parecia estar dormindo, ou até desmaiado. Lá estava seu melhor amigo. Deitado com a cabeça encostada na parede, seu olhos estavam fechados, sua boca aberta e sua pele pálida. Lean largou a pilha de CD’s que estava em sua mão para ir ao encontro do amigo, socorrer-lhe; não parecia bem.

Tocou-lhe, estava suando frio. Lean pegou no rosto de Mário e chamou por seu nome:

"Mário." E repetiu o nome mais outras vezes até que:

"Lean. Lean, me ajuda. Me ajuda. Ta tudo rodando aqui, eu to enjoado, acho que vou vomitar, não sei. Leãozinho me salva. Me salva, Leãozinho. Leãozinho, não me deixa. Fica comigo, Leãozinho." Seus olhos estavam vidrados, Lean já tinha visto muito outros amigos e a si próprio nesta situação, mas nunca ele. Sempre tão controlado, nunca bebia mais do que devia. Ele não, não seu amor. Não podia estar assim. Tinha medo, que tivesse extrapolado e precisasse de um médico. Não o Mário.

"Calma, Mário. Vai ficar tudo bem. Você só tomou um pileque, isso vai passar logo, logo."
A cabeça de Mário rodou e a boca do garoto salivou, três segundos depois o tapete da mãe de Lean estava inundado com parte da bebida e da comida ingeridas por Mário naquele dia. Lean olhou tudo aquilo, sentiu seu estômago embrulhar, mas não tinha tempo para essas meninices. Precisava cuidar do outro. Sempre que isso acontecia com alguém, havia sempre outro alguém que cuidava e fazia o serviço, assim Lean fugia. Mas desta vez era diferente, eram somente Mário e ele. Tinha que superar essa besteira.

"Mário, ta tudo bem? Você quer vomitar mais?" Lean estava muito aflito, estava sozinho, sem ninguém para ajudá-lo. Deveria levá-lo para o hospital? O que fariam lá numa situação dessas? Injeção de glicose! Esse seria o medicamento. Açúcar! Isso Lean tinha em casa.
Depois de limpar o rosto vomitado do amigo, deu-lhe várias colheradas de açúcar fazendo-o engolir. Sabia qual deveria ser o próximo passo: um banho. Esse seria mais difícil. Segurar o amigo e banhá-lo ao mesmo tempo não seria fácil. Sem contar que era apaixonado por ele; e como se comportaria? Qual seria sua reação diante da nudez de seu amado? Resolveu não pensar nessas besteiras. Mário estava ali, passando muito mau e precisava de sua ajuda, se tinha de fazê-lo, ele o faria.

"Mário, você precisa de um banho. Vem eu vou te ajudar."

"Eu vou tomar banho, eu vou tomar banho." Mário, coitado, queria parecer responsável.

Pôs o amado sentado no vaso sanitário e tirou-lhe a camisa vomitada e lá estava aquele corpo que muitas vezes já tinha visto, e até tocado, num encontrão ou numa brincadeira qualquer, ou ainda num saboroso abraço de amigos . Mas seu desejo era explorar aquele tronco de barriga saliente com seus sentidos, queria ouvi-lo, queria sentir seu gosto, seu cheiro, queria sentir sua alma. Porém não podia. Não daquele jeito. Não com o outro lerdo como estava. Respirou fundo despiu-lhe os tênis e as meias. Com muito cuidado e muito carinho. Faltava-lhe no corpo a calça jeans, Lean não queria tirá-la; Mário ficava lindo de jeans. Com muita dificuldade, o sóbrio admitiu que era necessário tirar-lhe a calça. E assim foi feito. Enquanto Mário resmungava coisas sem sentido, o outro desabotoou sua calça, o colocou de pés e com um pouco de dificuldade despiu-a.

Lean estava nervoso, estava ali. Diante do amor de sua vida, que se encontrava apenas de cueca, pronto para tomar um banho, que ele daria. A cor da cueca? Ta aí uma coisa que não se deve contar! Coitado. O garoto nem conseguiu achar em si testosterona suficiente para promover uma ereção, todos os seus hormônios haviam sido transformados em adrenalina.

O banho dado foi bastante superficial, era mais pra que a água gelada caísse no garoto. Lean esforçou-se o máximo pra não se aproveitar do amigo, queria-o e muito, mas não ali. Não daquele jeito.

Nesta época, Lean ainda nem tinha ganho dos pais uma cama com um outra auxiliar em baixo, assim só tinha uma cama para que dormissem. E tudo o que Lean queria era dormir no canto, mas achou mais prudente colocar o bêbado longe da beira, para que não caísse. E Lean se deitou ao seu lado, depois de ter limpado o vômito e de ter tomado o próprio banho. Ligou o condicionador de ar e os cobriu.

Uma cama de solteiro. Perfeita para corações apaixonados. Ali, deitados, os dois obrigatoriamente, se tocavam. Algumas obrigações são prazerosas. E Lean sonhando, mesmo antes de dormir. Mário acordou, sentou-se na cama e chamou Lean, que fingia dormir.

"Lean?"

"Oi."

"Se incomoda se eu for pra beira, é que eu prefiro."

"Não."

E por um instante, Mário se deitou sobre Lean, enquanto trocavam de lado na cama. Não demorou muito e o braço esquerdo de Mário estava embaixo da cabeça de Lean, que estava recostada no peito do outro. O que era aquilo? Mais uma vez! Amizade? Amor? Lean sonhava, dormindo, acordado, não teve muita noção.

"Café forte?" Lean perguntou quando o amigo chegou à cozinha.

"Sim, aceito." Respondeu uma linda e muito rouca voz. O sol invadia sem piedade a cozinha de Lean.

"Senta aí. Toma café. To cansado de fazer isso sozinho, meus pais estão viajando desde quarta." Mário sentou-se ao lado de Lean e seus pés se encontraram em algum lugar embaixo da mesa.

"Me fala aí, Lean. O que aconteceu ontem, hein?" Perguntou pegando a xícara de café da mão do outro.

"Bom, longa história... Você bebeu, bebeu e bebeu, e suponho que tenha bebido mais um pouco", Lean sorriu distraído, com os dentes e com os olhos. Mário gostava de quando o amigo ria assim, fazia-o feliz. " No fim da festa eu fui olhar pela casa, sei lá, por idiotice, não sei. Queria ver se tinha algo quebrado. E você tava lá. Caído atrás do sofá, daí eu te acordei e..."

"Eu vomitei o seu tapete, você me deu banho, me levou pro seu quarto e me vestiu uma roupa, agente dormiu junto na sua cama e... obrigado pelo presente" Mário concluiu.

"Como assim?! Que presente?"

"A cueca que você vestiu em mim. Era nova, eu vi. Você tirou da embalagem. Mas não precisava tanto, podia ate ser uma velha, ou até mesmo suja, seria sua Leão. Eu confiaria." E riu.

"Você é doido." Leia tomou um gole de café com leite. "Lembra de tudo, cara?"

"Tudinho. Principalmente de todo o seu carinho cuidando de mim. Eu não fico doido enquanto bêbado, só fico mau fisicamente minha psique fica sempre legal. Quero dizer, não saio de mim."
Ai, ai!

"Quando eu perguntei o que tinha acontecido," continuou Mário, "não estava me referindo ao porre, mas à parada da Fernandinha." Lean empalideceu. Outra vez aquele assunto? Logo àquela hora do dia! Tava tudo indo tão bem.

"Nada. Ela tava muito bêbada, falei pra ela o que você mandou, ela sorriu e me disse: "Sabe que eu te amo, né? Você é meu melhor amigo.". Tadinha." Mentira deslavada! Ou isso, ou contar toda a verdade, mas não podia.

"E foi por isso que você a levou pro seu quarto, pra cuidar dela?" Lean olhou pra Mário.
"Quê?!" Fez-se de tonto.

"Eu vi, Lean" Mário deixava um tom de impaciência e decepção escapar na sua voz; percebeu isso, e tentou algo mais tranquilo. "Não precisa mentir, cara. Sou seu amigo. Pegou ou não?!" Não conseguiu esconder a ansiedade na pergunta.

"Claro que não." Lean sentia o peso de ser amigo de quem amava, se ele se sentia tão entusiasmado com uma possível ficada sua, era porque não tinha o menor interesse. "Ela falou um monte de besteiras. Ela só queria atenção, sabe? O cara que ela gosta não tá na dela." Meias verdades. Isso existe?

"Pior que isso é viver na incerteza. Dúvida, sem saber se tá ou não na sua."

"Ah, sem essa, Mário! Qualquer garota fica caidinha por você. É só você escolher." Lean tentava saber quem era a tal.

"O que acontece é que eu não quero nenhuma delas." Mário separava as partes do biscoito recheado concentradamente. "Quem eu amo tá além dessa gente, mas das duas uma: ou não tá nem aí pra mim, ou vive no mundo da lua, a ponto de não perceber."

"Vai ver ela pensa a mesma coisa." Lean, impaciente querendo uma brexa, que Mário se traísse e dissesse um nome, mas não.

"É, vai ver pensa. E faz muito tempo eu sonho em saber o motivo de você ter ficado tão alterado com essa história toda ontem."

"Como assim há muito tempo?! Isso foi ontem!"

" O tempo? O tempo é uma coisa muito misteriosa. Um dia você vai entender."

Capítulo 7 - Close to you

Lean estava sentado na arquibancada da quadra da escola. Ele observava seus colegas de classe tendo aula de educação física, estava fora naquela aula, pois havia quebrado o pé e o engessado.
Dentre todos os meninos que jogavam basquete, um único tinha por inteiro a atenção de Lean. Era ele o único que era seu, Mário. Lindo correndo com seu "short de educação física", sorrindo, fazendo cara de homem, concentrado, sério, risonho. Lean podia ficar ali, pra sempre. Fazendo o que mais gostava, encenando Clítio. E se virasse flor, queria ser plantado no cume do monte mais alto. Queria olhar seu Apolo por todos os cantos do mundo.

E foi ele. Mário, quem marcou a primeira sexta, de três pontos. Era exibido, sim. Ele podia ser. Marcada a sexta correu em direção a arquibancada, e mais especificamente em direção de Lean. Abraçou o amigo combalido e deu-lhe um beijo na cabeça.

"Essa foi pra você, vê se fica bom logo. Quero te ganhar." E saiu. Saiu, mas deixou uma semente na cabeça de Lean "Quero te ganhar." Será que esta frase estava carregada de segundas intenções? Seria que ao dizer quero te ganhar, o amigo disse que queria ter Lean, ou era simplesmente vencê-lo no jogo? A primeira era mais agradável aos sonhos de Lean, que creu ser ela a alternativa correta.

Depois de um tempo de jogo, Mário deslocou o pulso e, dispensado da aula, sentou-se ao lado de Lean, no lugar em que agora tinha mais cara de hospital do que de arquibancada.

"Poxa, ta doendo muito." Mário segurava o pulso.

"Pede a sua mãe pra dar um beijo, isso sempre funciona." Sugeriu Lean aos risos.

"Minha mãe ta bem longe agora. Os meus pais estão viajando a trabalho e além do mais, depois de certa idade beijo de mãe não passa mais a dor, tem que ser outro tipo de beijo", olhou nos olhos do amigo ao seu lado.

Lean ficou sem ação, pareceu-lhe que Mário estava lhe cantando, mas por medo, ou lerdeza, não quis arriscar uma investida. Poderia ser que estivesse enganado. Não colocaria em risco sua amizade, nem seu anonimato, melhor dizendo, armarionato. Da última vez que se arriscou, não foi muito feliz.

Talvez a dor ou o cansaço, ou quem sabe os dois, ou ainda o amor, fizera com que Mário recostasse a sua cabeça no ombro do amigo, que deitou a sua sobre a do outro. Estavam ali, como dois bons amigos que eram, a escola não desconfiava de nada, mas Deus, onisciente que só Ele, sabia que na mente daqueles seus filhos, aquele não era mais um gesto de amizade, mas de alguém que quer amar e ser amado. Estar assim, um tão perto do outro fez Lean lembrar de uma música, que era cantada antes mesmo de ele nascer :"Why do birds suddenly appear, everytime you are near? Just like me they long to be close to you..."

Sem perceber o que estava fazendo, Lean começou a cantar bem baixinho um pedaço da música:
"On the day that you were born the angels got together", numa fração de segundos Mário tomou fôlego e completou.

"...and decided to create a dream come true, so they sprinkled moon dust in your hair of gold, and starlight in your eyes of blue", o olhar dos dois se encontrou e riram.

"Você conhece essa música? É tão velha," Lean estava na verdade era sem o que dizer estava encabulado e ao mesmo tempo nas estrelas por ter dividido um momento como aquele com Mário. Que momento, afinal?!

"Como não? Minha mãe me criou ouvindo isso. Não há uma só música do The Carpenters que eu não conheça. Guardo essas músicas bem no centro do meu coração de selva."
"Você e essa sua mania besta de chamar o coração de selva!"

"E ele é, Leão." Disse Mário em tom misterioso enquanto contemplava o nada.

Duas semanas depois, Lean já não tinha mais o pé imobilizado e nem mesmo o tornozelo de Mário demonstrava sinais de luxação. Se a narrativa tivesse inicio neste parágrafo, algum leitor poderia imaginar que duas semanas antes os dois, Lean e Mário, haviam se atracado numa briga desgraçada. De maneira engraçada, eu diria que este leitor não estaria, de fato, errado. Os dois não tinham brigado, mas suas almas estavam impacientes, querendo ser completas, assim estavam se engalfinhando. E as feridas do corpo físico só fizeram refletir a dor e o desejo internalizados em ambos os meninos.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Capítulo 6: Mário

Lean acordou as seis da manhã daquela segunda feira de fevereiro onde teria lugar seu primeiro dia de aula naquela nova vida; não tinha dormido muito bem, devido a ansiedade pelo começo do que seria sua nova vida.

Acordara mau e preguiçosamente. Deixou de má vontade a cama, os lençóis e o travesseiro, queria passar o resto do dia com estes amigos de horas boas. Amigos.

Amizade era uma coisa que Lean pretendia evitar. Não queria mais amigos como os que tivera no Rio Grande; gostaria de encontrar uma Susana, até, mas não alimentava esperanças de que fosse possível. Preferia ficar no seu mundo, curtindo sua própria companhia. Lean percebeu que enquanto vivia só, enquanto tinha pra si seus segredos, era feliz. A presença de um terceiro, na relação Lean e Lean, prejudicou sua vida. Fez mau a algo que estava indo bem. Mas Lean não sabia o que era ir bem, viver escondido, guardado não é lá uma grande idéia do que é viver bem. E quem é que sabe o que é viver bem? Mas o garoto estava com isso na cabeça. Ele mesmo era sua melhor companhia, fez em volta de si um casco, de onde não sairia. Mesmo que batessem, mesmo que deixassem recado na secretária. Não queria se envolver em nada, com ninguém em nenhuma circunstância. Inconstância de adolescente! Fato!

Fitando os olhos azuis no espelho do banheiro, Lean sorriu para si, encorajando a si mesmo. Era um dia diferente na vida dele. Estudou toda a sua vida no mesmo colégio e entrar numa escola onde ninguém o conhecia seria um pouco desconfortável.

Lean olhava uma listagem fixada na parede. Finalmente, encontrara seu nome na lista do 1º ano, turma A.

“Turma A?” Lean, virou-se. E parado a sua frente estava um menino. Moreno, um pouco mais alto que Lean, com cabelos negros e olhos verdes. O garoto ficou sem ação, era muito bonito o outro...

“Ei, rapaz, acorda! Ta dormindo ainda?” Perguntou o moreno sorrindo debilmente.

“É. É sim. Turma A”, desconcertado e perdido em seus pensamentos Lean respondeu a pergunta do outro.

“Eu também. Você sabe onde fica a sala?”

“Não, eu sou novo aqui.”

“Ah, eu também. É melhor tentarmos achar juntos. E... como é o teu nome?”

“Lean, e o seu?”

“Mário. Você tem um sotaque diferente, de onde vem?”

“Do Rio Grande do Sul.”

Os dois procuraram juntos a sala 307, que abrigaria o 1ª ano, Turma A. Não foi muito difícil encontrá-la, afinal, espalhados pela escola, havia cartazes que indicavam o caminho. Caminho que era muito mais fácil se seguido junto de alguém. Tudo era novo, tanto pra Lean quanto pra Mário. Era melhor ser dois, do que um. Lean se queixava consigo mesmo, não devia estar fazendo amizade. Mas era sempre assim: Lean se prometia algo, decidia e depois jogava fora as promessas.

A sala não estava muito cheia ainda, algumas meninas abafaram risos quando os dois entraram. Lean ficou vermelho e Mário pareceu não ligar. Sentaram então, bem no centro da sala, Lean, na terceira carteira e Mário na quarta, logo atrás.

“Eu sou daqui do rio mesmo, De Niterói. Conhece?” Mário falou.

“Ainda não. Sou muito novo. Cheguei mês passado, ainda não fui a um monte de lugares.”

“Não esquenta, nem eu fui. Acontece que meu pai achou que seria melhor morarmo por aqui.” Mário dizia enquanto se distraia percorrendo com os dedos as letras feitas com liquid paper sobre a mesa.

“Por quê?” Lean olhou para ele. Mário exitou. “Ah, me desculpa. Não precisa falar.”

“Ta certo, então.” Mário desviou o olhar. E tentou de maneira muito risível mudar de assunto. “Que saco! Daqui a pouco vão pedir pros alunos novos levantarem a mão e perguntar nossos nomes, de onde viemos de que escola... Isso é chato.”

“É a primeira vez que faço isso. Nunca mudei de escola.”

“Sério?! Não se vê muita gente como você por aí.” E riu, grato de que o novo assunto proposto tivesse sido tão bem aceito.

“Você vem do Sul, não é?!” Perguntou uma das garotas que riram, ela estava sentada na carteira a frente da de Lean.

“Sim. Rio Grande do Sul. Meu sotaque me entregou?” Lean sorriu.

“Huhum. Eu tenho uma prima que mora em Florianópolis.”

“É? Mas aí é Santa Catarina.”

“É?” E fez uma careta. “Fernanda.” Disse esticando a mão direita. “Fernandinha, se preferir.”

“Lean,” disse pegando na mão dela. “ E esse é o Mário.”

“Oi, Mário!” Disse Fernandinha acenando de sua carteira para Mário, que fez um meio e tímido sorriso.

Uma professora chegou na sala e a conversa cessou. Não demorou muito para que Lean, Mário e alguns outros levantassem a mão e se apresentassem. E não só nesta aula, mas na outra que antecedeu o recreio.

“Você não vai sair da sala?!” Fernandinha perguntou a Lean.

“Vou, mas to esperando ele.” Apontou para Mário, que guardava o caderno na mochila.

“Ah, ta. A gente se vê lá em baixo.” E saiu saltitante com sua trança.

“Espivitada ela.” Mário ria.

“Adolescentes!” Lean fazia que não com a cabeça, bancando o adulto decepcionado. Depois riu também.

Depois, na hora de a mamãe contente ir ver, Lean passou pelo portão, mas um vergalhão intruso não o deixou seguir. Ele sentiu a pele do lado arder, Mário olhou pra trás e se assustou com a cena.

“Meu Deus!”

“Calma, não foi nada. So me arranhou.” Disse Lean tirando o vergalhão de dentro da blusa com a ajuda do porteiro.

“Eu não sei o que isso ta fazendo aí.” Falou o homem nervoso. “Podia ter sido pior.” Só Lean sabia como tava ardendo e sangrava um pouco.

“Que bom que não foi nada.” Lean percebeu o tamanho estrago em sua camisa.

“Você vai precisar de outra blusa.” Mário também tinha os olhos no rombo que se formou. “Eu te empresto uma.”

“Você tem uma camisa extra na mochila, ou coisa assim?” Lean perguntou enquanto os dois já estavam andando de novo.

“Não, cabeção. Eu moro aqui perto. Você vem até minha casa eu te empresto uma blusa.”

“Ah, não precisa se incomodar.”

“Não incomoda. Se quiser...”

“Vou entrar no ônibus e descer em na porta do prédio, nem vai aparecer muito.”

“Então tá. A gente se vê amanhã.” E estendeu a mão pro outro.

“Valeu!” Lean apertou a mão de Mário.

Os dias foram passando, e assim, as semanas, logo, os meses, e aquele colégio servia de palco pra mais uma amizade entre dois meninos. Uma amizade muito maior que a de quaisquer outros dois meninos. Eram mais que amigos, eram cúmplices. Mais que cúmplices, comparsas, companheiros. E tudo começara no aglomerado formado no saguão de entrada da escola.

“Praia do canto, hoje, Leão?” Um segredo compartilhado, Mário sussurrava ao pé do ouvido no amigo sentado uma carteira à sua frente, não queria que ninguém o adivinhasse.

“Claro. As sete, beleza pra você?”

“Tranqüilo, cara.”

Leão era um apelido que Mário dera a Lean em função de seu nome. Praia do canto era como os dois batizaram, pra si, uma praia de difícil acesso e sempre vazia. Os dois iam lá pra beber, encher a cara. Tomar uns “goró”. Estava acontecendo de novo. De novo não! Não, não, não! Distraído, Lean, coitado. Não se deu conta, se foi deixando levar.

Sentia falta do amigo, se longe. Gostava do seu cheiro; seu sorriso o agradava, sua voz nos segredos, sua atenção. Ah, não! Laços. Quando deu por si esteva atado num. Mas era um laço bom demais. Aproveitava cada instante com Mário só para estar perto. E foi na praia do canto, quando um Mário um pouco mais feliz do que o normal, gargalhou de uma história sem importância, que Lean parou. Observou o outro e sentiu. Deu por si. Estava amando. Aqueles olhos serrados de tanto álcool, que o olhavam tão profundamente. Lean sentia o coração vibrar em cada momento em que os dois se abraçavam em momentos de “quase queda”, em função da dificuldade de andarem na areia e por estarem alterados.