quinta-feira, 5 de março de 2009

Capítulo 4 -" Good by my friend"

“Good bye, our FRIEND”, esse era o letreiro fixado na parede do salão alugado para a festa de despedida de Lean, que teve lugar em vinte e sete de dezembro. Ele estava bem contente com a surpresa preparada pelos seus melhores amigos.

Só uma coisa era capaz de minimizar esta alegria, e era talvez a mais importante e a que tinha peso dois: seu amor irrecíproco. Ele não sentia o mesmo por Lean, Levi não o amava. O garoto assim imaginava, por que não via o amigo desde... Será que ele não apareceria ali, nem na sua despedida?

“O que ta, fazendo aí no canto, garoto?” Era Susana, sua amiga favorita.

“Nada. Só estou aqui,” Lean respondeu e riu.

“Isso dá pra ver.” A garota sentou ao lado do amigo no pufe onde ele estava. “Amigo, eu preciso te dizer uma coisa. Esse não é o momento certo, mas é que fiquei sabendo ontem e não sabia o que ia fazer. Pensei bastante essa noite e resolvi te contar.” Ela estava muito séria e apreensiva.

“Amiga, se você estiver grávida, tudo bem. To contigo! Como sempre.”

“Não, meu amor, não se trata de mim.” Seus olhos fugiram dos de Lean.

“Então é sobre mim?” Lean estava ficando nervoso.

“Sim, e eu to muito chateada, por nunca ter confiado em mim.”

“Fala logo o que é?” A boca do garoto estava ficando seca. Podia imaginar o que seria, mas como fora possível? Levi?

Antes que Susana pudesse dizer qualquer coisa a música parou e o silêncio repentino foi quebrado por um barulho muito incômodo de microfonia, que invadiu o lugar.

“Senhoras e senhores, é com muito prazer que apresento a vocês a festa de despedida do meu grande amigo Lean.” Era Levi. “Vem aqui, Lean. As pessoas querem te ver.”

Susana falava alguma coisa, parecia desconfortável, mas Lean não ouvia nada pois tinha muita gente falando e acabou por ir até um mini palco, no qual Levi estava. Aprenderia que é preciso parar e ouvir. Agir vem depois.

“Esse meu amigo... O que falar dele?” Recomeçou Levi, agora que um Lean muito envergonhado estava postado ao seu lado na pequena plataforma. “Sei que é uma pessoa muito fina. Delicada, pra ser mais exato. Contagia a todos com sua alegria. Sim, ele é um rapaz demasiadamente alegre. É, meus caros, Lean é um menino alegre. E sei perfeitamente dessa alegria toda.” Os olhos de Lean estavam vermelhos, queria sair dali correndo, mas não tinha coragem de passar por todos aqueles colegas de escola e de vizinhança, seus primos também estavam ali. “Sei do que estou falando, mas eu gosto dele. Pode ser o que for, mas é meu amigo. Outro dia chegou com um papo esquisito, falou que tava apaixonado por mim. Como todo mundo sabe, eu sou macho. E falei: “Olha, cara, essa não é minha praia não, mas você vai ser feliz eu sei.”. Aí ele ficou meio triste e perguntou se eu não podia dar uns pegas nele, pra ele ficar feliz. Eu disse que não fazia essas coisas, mas continuamos amigos até hoje...”

As lágrimas de Lean faziam “gato e sapato” de seus olhos, que não conseguiam contê-las, todos os olhares virados para Lean, que chorava feito um aniversariante que não pôde comemorar o aniversário com quem ama.

“Vem, primo, vem.” Era Marcelo, seu primo mais velho. Pegou Lean pela mão e saiu dali, atrás deles estavam Susana e Tábata, a noiva de Marcelo.

Chegaram até o estacionamento.

“Lean, olha pra mim.” Era Marcelo. “Eu te amo, viu? Amo você. E aquilo que eu disse sobre querer ter nascido seu irmão mais velho ainda ta de pé. Você vale ouro, guri.” O mais velho abraçou o primo. “Olha, até a hora do almoço de amanhã, meu tio e minha tia já vão ta sabendo de tudo, então eu acho que você deve contar agora, pra que eles não saibam por gente que não tem nada a ver.”

“Eu sei, mas é que não tenho coragem.” Falou Lean entre um soluço e outro.

“Se quiser eu vou lá contigo, e te ajudo. Quer?” Lean fez que sim com a cabeça. “Eu vou levar vocês duas em casa e vou pros meus tios.”

Entraram os quatro no carro, Lean foi atrás abraçado com Susana, que lhe falava palavras de encorajamento. O carro parou em frente a casa de Susana e depois no portão de Tábata, e finalmente estacionaram em frente à casa de Lean.

“Vamos lá?” Marcelo olhou para o primo.

“É, seja o que Deus quiser!”

“Que Ele te proteja.”

Entraram na casa, já passava de meia noite e os pais de Lean já haviam ido deitar, mas esse problema foi resolvido com umas batidas na porta do quarto deles.

“Mãe, pai, eu preciso falar com vocês.”

“Entra, filho, estamos assistindo TV.” Soou a voz da mãe.

“Marcelo, você fala por mim?” Lean estava trêmulo, seu coração saltava-lhe do peito, sentia ânsias de vômito. Os dois entraram no quarto.

“Marcelo?!” Espantou-se o pai de Lean.

“O que aconteceu? Onde ta todo mundo?” Flávia levantou-se às pressas da cama.

“Calma, tia, estão todos bem. Não viemos falar de acidentes ou coisas do tipo. O assunto que vim falar trata do Lean.” Marcelo acalmou a tia.

“Então pára!” Respondeu uma enérgica Flávia. Parecia saber o que viria. Ela era mãe.

“Como assim, tia? Não posso falar do Lean?”

“Não. Não você. Mas ele. Olha, Marcelo, te admiro muito pelo que está fazendo e pode ter certeza que vou lembrar disso pra sempre. Te agradeço pela dedicação ao Lean, pelo atenção para conosco, até pela sua coragem em vir até aqui, mas eu gostaria que você esperasse lá fora. Lean tem algo pra me contar e deve ser ele a fazer isso.” A mulher sorriu para o sobrinho, que retribui num sorriso chocho, e saiu do quarto. Ela pressentia a bomba. O clima, o olhar do filho, o peso com que falavam as coisas, a calma que tentavam manter. Alguma coisa realmente importante, sobre Lean, eles falariam. Mas tinha de ser o Lean, e somente ele.

“Então, filho, o que tem pra falar?” Perguntara Fernando.

Lean, que sentara na cama de seus pais, olhava pro chão como se aquilo fosse a única coisa existente no mundo.

“Lean, vocÊ roubou alguma coisa?”

“Não, mãe.”

“Matou alguém?”

“Não, mãe.”

“Fez mal à alguma pessoa?”

“Não.”

“Usou drogas?”

“Não, mãe!” A última lhe causou uma certa impaciência.

“Então não vejo nenhum outro motivo que fosse capaz de fazer você olhar pro chão.” Falou a mãe que tentava dar ao filho um porto seguro, que ela mesmo parecia não ter. A mulher estava sem chão, mas não queria passar esse tremor por filho.

“Aqui com você, filho, só há sua mãe e eu, não somos estranhos, somos seus pais. Não precisa esconder os olhos de nós.”

Lean ainda não consegui olhar nos olhos dos pais, sabia o que tinha de falar e sabia que a reação deles não seria a melhor.

“Lean, seja forte. Seu pai e eu conhecemos você desde que nasceu. Você é parte de nós. Tudo o que precisa fazer, é olhar nos olhos de seus pais e dizer o que quer que seja.”

Pela primeira vez, naquela noite, Lean olhou nos olhos da mãe e depois nos do pai. “Pai, mãe,” ele praticava o olho-no-olho ora com um, ora com outro, “eu...” as lágrimas corriam-lhe pela face, seus pais pareciam super tranqüilos, mas Lean sabia que aquela tranqüilidade estava amplamente comprometida. Lean buscava um eufemismo capaz de ajudá-lo. “Eu... eu não gosto de meninas. Eusouhomossexual.” Rasgou o verbo.

Sua mãe parou de chofre. Flávia fechou os olhos. Rezou por forças que viessem de sabe lá onde. Seu filho, não!

“Um dia o médico me disse: é um menino. Eu chorei, Lean. Chorei pois era tudo o que eu queria. Um filho.” Ela fez questão de marcar o “o” da desinência de gênero.

“E você vê alguém diferente de um filho aqui?” O garoto se armou, suas sobrancelhas estavam indignadas.

“Sua mãe não quis dizer isso, Lean.” Fernando tentava apaziguar o que poderia virar uma bomba.

“Meu filho, me entenda: eu comprei um enxoval azul, carrinhos, bolas... Sonhei com o serviço militar, meu menino fardado, pára-quedista. Com uma nora e netos. Mas você foi crescendo e eu tive de admitir que não. Que não seria como no meu sonho. Nada. Eu não queria enxergar isso. Não!” Flávia jogava os cabelos louros.

Dentro de Lean um motim crescia. O que ela achava? Pretensão demais. Ele não era menina!

“E eu brinquei com todos as carrinhos que você comprou”, Lean ficou de pé. “Jjoguei com todas as bolas que você me deu. Quem foi que te disse que não posso servir à pátria? Não virei mulher; eu não nasci mulher. Eu sou o mesmo Lean de sempre. Ah, e se você não notou, a blusa que estou vestindo é azul!” O menino importado de Vênus alterou a voz.

“É difícil. Uma mãe não está pronta pra isso. Você não tem idéia, meu filho, do que é criar um filho acreditando que ele é uma coisa e de repente esse filho se mostrar outra completamente diferente...” Flávia chorava lágrimas de frustração.

“Mãe, eu posso não saber o que é criar um filho nessas condições, mas eu sei o que é crescer nelas. É difícil, mãe. Eu é que sei. Crescer achando que é uma coisa e depois entender que você é outra.” Lean também chorava sentado na cama de novo. “Eu não sou um monstro. Ou sou? Me digam. Me ensinem. Sejam meus pais!” O garoto clamava por paternidade, queria uma luz, um caminho, um “como fazer”. Mas nem sempre há.

“Você não é um monstro.” Fernando falou. “Você é o meu filho. E o filho da sua mãe. Nosso.” Sua voz era bem calma de pessoa centrada, coisa difícil de se ver. “Do mesmo jeito que pra você foi difícil se perceber... assim, pra nós também é. Mas você teve tempo de digerir essa história. Nós não estamos tendo. Acabamos de saber que nosso filho não é como esperávamos que ele fosse.”

“E o que esperavam que eu fosse?!” Ironia e caras e bocas.

“Filho, se desarma.” O pai foi bem sério e calmo. Lean sentiu vergonha. “Nós precisamos de tempo. Tempo pra entender o que se passa na sua cabeça, pra aceitar o que sempre soubemos.”

Flávia chorou por isso. Sempre soube, só faltava a certeza. Ele era seu filho, caramba! Pais conhecem seus filhos. Sabem de tudo, sempre. Escondem. Fingem. Abafam. Mas sabem! Lean, de crista abaixada, olhou pros detalhes do lençol, boa companhia, boa fuga.

“Filho, você nos dá esse tempo?” Flávia pedia ao filho. “Nós queremos estar com você, como em todos os momentos, mas estamos frágeis agora. Não estávamos prontos.”

“É, Lean. Deixa a gente respirar.” Fernando colocou a mão no ombro do filho.

Lean olhou a mão do pai em seu ombro. Seus olhos se encheram de lágrimas que saíram desfilando pelo seu rosto. Queria que os pais dissessem coisas diferentes. Queria que fossem capazes de entendê-lo, de compreender tudo. Eles eram pais, caramba! Tinham que ajudar os filhos é assim que acontece. Tinham que estar prontos. Ter um filho é isso: estar pronto. Se Lean tivesse quebrando a perna, não estariam prontos para um hospital? Se tivesse engravidado uma menina, não estariam prontos pra conversar com a família dela? Porque não estavam prontos agora?

“Eu posso deixar vocês respirarem. Mas quando eu vou respirar?” Copiosamente ele chorava. Soluçava. “Eu preciso de vocês, mas do que vocês precisam de tempo. Não posso dar tempo a vocês. Eu preciso de vocês agora! Agora! E não é daqui a um minuto. Não tenho tempo pra dar. PRECISO DOS MEUS PAIS!” Fernando puxou o filho para um abraço. Os dois choraram juntos. Flávia se uniu ao abraço. Os três choraram juntos.

“Eu sei quem é você! Todas as mães, no fundo, no fundo, são agentes do FBI; e a sua é uma das boas.” E riu secando os olhos, com a classe de sempre. “Não precisei mexer nas suas coisas, bisbilhotar agendas, celular, computador... não cacei no seu e-mail, nem pelo seu quarto. Apenas fui, e sou, sua mãe. Eu te trouxe ao mundo, te alimentei, cuido de você e vou cuidar, até quando eu puder. Enquanto você estiver debaixo das minhas asas, essa galinha velha, aqui, vai cuidar de você. Eu me orgulho de você, Lean. Quantas mães por aí, que tem filhos homossexuais, que não podem ouvir seus filhos falando isso? Muitas fuxicam a vida do filho, contratam detetives, fazem muitas coisas. Mas eu devo ser muito iluminada, ouvi. Pude ouvir da sua boca.”

Lean deitou-se entre os pais e contou aos dois o acontecido na festa e ficaram preocupados com o que aconteceria, com o que a família teria de enfrentar. Lean preferiu não contar detalhes de seu momento com Levi. Aquilo esperava que ficasse entre os dois, visto que Levi não contaria pra ninguém o que tinham feito.

Adormeceu abraçado com seus progenitores, naquela noite. Teorias e teorias. A prática é quem leva a perfeição. Se fossem-lhes dado tempo, esse tempo não acabaria. Prazos, fazem as pessoas se enrolarem. Endividam. Fazem prestações não serem quitadas. À vista é o que há. Coitado de Marcelo. Dormiu no sofá. Uma almofada como travesseiro e um cortina como lenol.

“...Eu faria qualquer coisa pra ter você, nem que fosse só hoje.” Levi lembrava das palavras de Lean e sentia-se aliviado, isento.

* * *

Eram ainda sete da manhã e o telefone já tinha tocado no mínimo umas oito vezes. Parentes e amigos próximos querendo saber detalhes e perguntar como as coisas estavam. Pessoas sem noção: uma hora daquelas! Ninguém nem tinha morrido. Só se liga nessas horas quando alguém morre!

"Flávia, eu soube do que aconteceu com o Lean. Como ele está?" A mãe de Fabrício, um dos colegas da escola de Lean.

"Ah, Sandra, ele está bem. Um pouco triste por ter tido a confiança traída, mas fora isso ta tudo bem com ele."

"Que bom." Pelo tom de voz que Sandra usava, parecia que estava falando com uma criança de três anos que acabara de ficar órfã. Ele pisava em casca de ovo, e com medo de quebrá-las. "E vocês como estão? Vão fazer o quê?"

"Nada. Por que deveríamos fazer alguma coisa?" Flávia alterou um pouquinho a voz.

“Ah, você sabe como é, né? Tentar reverter isso. Ele é muito jovem e ainda dá tempo de curar e ...” Quem era ela? O que ela estava dizendo? O sangue de Flávia foi lhe subindo pela cabeça! Quem ela pensa que é pra falar que seu filho era um doente?!

"Sandra, muito obrigado pela atenção e o Lean não está doente! Preocupe-se com os seus filhos. Tchau!" A mãe de Leãn desligou energicamente o telefone na cara da outra.

Nem dois minutos se passaram e o telefone toca de novo.

"Oi, Flávia. É a Lúcia." Lúcia era a irmã de Flávia e mãe de Daniel.

"Ai, Lúcia!" A vontade que tinha era de desabar no colo da irmã mais velha. Já tinha recebido tantos telefonemas hostis e curiosos, que ouvir a voz de alguém como Lúcia, perecia um refúgio. Um abrigo. Adulão!

"Irmã, como ta tudo aí. O Daniel me falou de ontem."

"Ta tudo indo. O Lean ta dormindo ainda, lá na minha cama. Ele dormiu com a gente ontem."

"Fiquei indignada. Olha, como o Levi fez isso, né? Mas o Daniel disse que "meteu a porrada" nele."

"Ai, meu Deus. Ainda vou ter problemas com a Regina por causa disso."

"E qual foi a reação do Fernando?"

"Foi muito tranqüilo, ele está do lado do Lean. Na verdade a gente já percebia isso. Ele é nosso filho."

"Quer que eu vá ficar aí?"

"Não tem necessidade, Lúcia, se precisar eu te chamo."

"Ta bom. Manda um beijo pro Lean e diz pra ele que a gente aqui em casa também ta com ele."

"Brigada, Lúcia. Tchau."

Flávia já estava caminhando pra cozinha, quando mais uma vez a campainha do telefone a tira de seu rumo. Meus Deus que desespero! A mulher estava ficando louca!

"Alô." Disse Flávia.

"Oi, por favor, a mãe do Lean."

“Sim, é ela.” Os olhos de Flávia encenando impaciência.

"Aqui quem ta falando é a mãe do Gabriel, que estuda com seu filho. Eu quero te dizer que não é do meu agrado que meu filho ande com o seu."

"Querida, eu quero que você pegue tudo o que te agrada e o que não te agrada e enfie nessa sua boca nojenta. E por favor, esquece o meu filho!" A leoa rugia feroz! Marcelo, que acordara completamente dolorido, no meio da conversa, pedia a tia que tivesse calma.

Lean acordou e sua mãe achou melhor não contar-lhe sobre nenhum dos telefonemas. Só passou o recado de sua tia Lúcia.

"Filho, vai na padaria comprar um pãozinho pra gente, vai. Seu pai foi trabalhar e esqueceu de buscar."

"Não quero ir na rua, mãe. Tenho medo do que pode acontecer. E se todo mundo já estivar sabendo?”

“Eu posso ir, tia.” Marcelo se mostrava pronto em ajudar Lea. Exatamente como um irmão mais velho, sempre foi assim. Marcelo protegia Lean em tudo.

"Nada disso! Você não pode ter medo. Vai ficar em casa a vida toda? Hum? Vai se esconder pra sempre, filho?" Flávia acariciava o rosto do filho. "Você não tem do que se envergonhar." Ela estava se surpreendendo.

"Não tenho, mãe, mas..."

"Sem mais! O dinheiro está em cima da mesa da sala, vai. Essa hora o pão tá quentinho." Sua mãe lhe sorriu, um sorriso que tinha gosto de coragem.

Lean pegou o dinheiro em cima da mesa, girou a maçaneta abriu a porta e respirou. Dentro de segundos estaria entregue a um purgatório. Olhares de pedras, expressões de inquisição, enforcamentos verbais. Pagou a Caronte as duas moedas e no seu barco navegou nas amargas águas de sua vizinhança. A cada passo tremia mais. Tinha medo do que as pessoas falariam. O primeiro a aparecer naquela manhã foi Nestor, o pai de Gabriela, uma colega da rua. Os olhos do homem fitaram Lean e seu rosto se transformou. Parecia que o homem estava vendo um assassino impune. Lean tentou não lhe dar atenção, mas o homem cuspiu no chão. Lean deu meia volta. Não queria mais essas cenas, e sabia que as teria.

"Está fugindo das pessoas?" Essa pergunta já lhe fora feita antes. Daniel passou o braço pelo ombro do primo.

"Daniel, pára com esse deboche." Lean refazia o caminho de casa.

"Não to debochando de você, Lean. Onde você tava indo que voltou?"

"Eu tava indo na padaria, mas..."

"Esse vagabundo velho te sacaneou? Vem, vamos na padaria, eu vou com você." Lean relutou, mas o poder de Daniel sobre ele sempre fora mais forte. "Vamos, primo! Não tenha medo dessa gente. Eu to do teu lado."

“Tem mais é que está, né? Isso é tudo culpa sua." Lean disse enquanto eles caminhavam rumo a padaria.

"Culpa minha? Não! Eu vejo as tendências e desenho as roupas. Não invento a moda! Ah, nem te falei. Quebrei a cara do babaca ontem. Ele tava lá, rindo de você, se sentindo o vitorioso. Mandei um voadora, derrubei o panaca e sai esmurrando! Até sangue do nariz do infeliz eu tirei, vai ficar com olho roxo pra aprender. Ninguém mexe contigo, não!"

"Obrigado?" Lean não tinha certeza do que sentir.

Alguns outros olhares maliciosos e cochichos, mas não foi tão horrível quanto imaginara. Ir à padaria não foi como a ido ao Calvário. Se não fosse Daniel, teria desistido no meio do caminho e pensaria pra sempre que sua vida seria assim. Ia ter dificuldades, umas aqui e outras ali, mas teria momentos de estiagem e teria pessoas ao seu lado. Cresceu com um pouquinho de aversão a Daniel, mas seu primo, pode perceber, só lhe queria bem e lhe amava. Chegou em casa com o pão, quente como a mãe quis. Troféu de uma tarefa árdua. Flávia preferiu não perguntar como tinha sido, era melhor deixar que o filho voasse com suas próprias asas, um pouquinho. Pais costumam super-protegem filhos excepcionais. Flávia não queria dar esse tratamento ao filho.

Naquele manhã tomaram café juntos, os quatro. Flávia, Lean, Marcelo e Daniel. Um pouco depois, Susana ligou.

"Lean?"

"Não, é o Marcelo."

"Ah, Marcelo, é a Susana. O Lean ta aí?"

"Vou chamar, só um minuto." Fora do telefone: "Lean, Susana!"

"Oi, amiga." Lean sentia prazer em falar com ela.

"E aí, garoto? Como vão as coisas por aí?"

Lean contou pra amiga o que tinha acontecido depois que chegou em casa. Como os pais reagiram e tal, marcaram de se ver á tarde pra reverem a história e praticarem amizade. Isso é bom. Veriam filme de menina juntos! Lean era bom em futebol, mas também era bom no assunto “filme de ver sorrindo”.

Uns dias um tanto turbulentos os que Lean teve. Amigos virando as costas. Mostrando sua face de simples colegas. Parentes de narizes torcidos. O "adeus" do cartaz da festa de despedida acabou sendo um profeta, anunciando as novas. Amizades acabando, amizades se despedindo. Dando um adeus. Nem todos os amigos de fato se voltaram contra Lean, mas seus pais os obrigavam a não falar com ele, a não andar com ele, a não amá-lo com estavam acostumados. No time dos que dizem contra a homossexualidade, jogam aqueles que defendiam que a Terra era plana. Idéias antiquadas, intoleráveis e de muito mau gosto e "umbiguismo"! O meu, o meu e o meu. Eu. Meu. Meus interesses. Meu grupo. Meu meio. Meu pensamento. Minha etnia. Meus irmãos! Meus iguais! Pedras nos outros!

Nunca um Ano Novo fora tão cheio de verdade para Lean. Seria sim, um ano todo novo. Um outro Lean entraria em 2004.

Estavam todos reunidos na casa da velha que o menino venusiano aprendera a amar, sua avó. Seus tios, e tias, primos e primas. Toda a família esperava a chegada do novo ano. Lentilha pra dar sorte. Rabanada! Carne de porco. Peru. Jovens aproveitando pra tomar Champangne na presença dos pais sem serem repreendidos. Arroz de forno e farofa. Família comum. Família mundial. Matriarca viúva. Seus filhos e netos. Casais divorciados. Primos sem se falar. Primos de namoricos escondidos. Tias bêbadas chorando no fim da noite. Fofocas e intrigas. Alguém às vésperas de um casamento. Um casal perfeitinho. Uma briga de casal. Crianças pentelhas gritando e correndo. Adolescentes risonhos e falando de música. Religiosos. Espirituais. Sérios. Risonhos. Uma árvore de natal e um gay - um, pelo menos até onde se sabe. Retratos de famílias. Canadenses, francesas, búlgaras, angolanas, judaicas, japonesas, australianas, mexicanas, brasileiras, indianas, indígenas, gregas troianas e romanas, tibetanas, cabo verdianas, americanas e chilenas, marcianas, sagradas, jupiterianas. Famílias! O que se pode ter certeza é de que tudo o que acontece, "acontece nas melhores famílias!" Foi o tio Cláudio quem soltou os fogos à meia-noite. Abraços e beijos e o coro que dizia: "Feliz Ano Novo!" Pra quê Times Square? Pra quê Copacabana? Estavam em casa. Estavam em Família.

Um comentário:

  1. Oiii!! Q legal vc estar postando aqui! se escreve good-byE!
    boa sorte c o livro!
    bjs

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