O teto estava normal, com a mesma cara de sempre. Mas quem disse que ao olhar para o teto, Lean o via? Sua mente passeava pelos olhos castanhos do seu amado, por aquele cabelo loiro, muitas vezes ocultando a sobrancelha, e também passava pelo sorriso, sorriso inocente de garoto que queria provocar os venusianos, de que espécie fossem.
De tudo na vida, uma só coisa tinha certeza. E não era a morte. Era que mais cedo ou mais tarde, confessaria seu amor. Ele precisava saber. E se ele também sentisse a mesma coisa? Lean sabia que não podia guardar aquele sentimento só pra si. Precisava compartilhá-lo. Não poderia ser egoísta ao ponto de esconder isso, ao ponto de privar o pobre Levi de viver o amor que talvez reprimisse há anos. Mas como falaria? Como chegaria para o seu melhor amigo, olharia em seus olhos e diria: “Te amo”? Não seria fácil. Mas se teria de ser mais cedo ou mais tarde, que fosse mais cedo. Lean não sabia como, mas estava decidido, seria até o fim deste ano.
Um suave “toc-toc” na porta tirou Lean de seu devaneio.
“Filho, nós precisamos conversar com você,” sua mãe não parecia zangada, mas apreensiva. O que seria para afligi-la assim? Lean entrou na sala e sentou-se na poltrona que ficava de frente para o sofá em que seus pais estavam sentados.
“O que houve?”
“Filho, o que temos pra te contar não é muito fácil,” seu pai iniciara a conversa. Ninguém tinha falado nada ainda, mas Lean que sentira nos pais a presença do fantasma do divórcio que arrastava correntes na casa há muito, sabia que as próximas palavras iriam de desquite a comunhão de bens.
“Lean, seu pai foi transferido.”
“É, filho, fui transferido. E temos de ir embora até o fim de janeiro.”
“Como assim, transferido? Até o fim de janeiro? Que história é essa?”
“Lean,” recomeçou Fernando. “Eu fui transferido para o Rio de Janeiro, e temos de ir até o fim do mês que vem.”
“Não pode. Assim de uma hora pra outra? Quem eles pensam que são? Nem avisam.”
“Eles avisaram, filho, mas seu pai e eu achamos melhor não te falar nada. Não queríamos que você fosse mal na escola por causa disso. Preferimos esperar até o fim do ano letivo.” Flávia olhava para o filho como se esperasse pela explosão de uma bomba. Que esplodiu.
“Eu não vou pro Rio de Janeiro. Simplesmente não vou! E quer saber? Eu já to é cansado da Marinha! Ela vem ditando o que a gente deve ou não fazer, mãe. O meu pai não me viu nascer porque estava em Pernambuco, a mando da Marinha. Na minha primeira eucaristia, meu pai estava na Marinha, e nas minhas festas escolares? Se eu perguntar a resposta será uma só: Marinha! Ela veta tudo o que a gente quer fazer, ano passado não viajamos pra Natal, por que a Marinha mandou o papai para a Bolívia. E agora isso, mandar a gente pro Rio de Janeiro. Eu não vou.”
Em pouco tempo, tudo o que Lean faria seria agradecer à Marinha pela maravilhosa transferência. E haverá um tempo em que contará os dias para a viagem. Presidiário riscando a parede de sua sela.
Lean levantou decidido, da poltrona onde estava, não tinha de ir pro Rio coisa nenhuma. Seu lugar era ali. Só existia um rio no qual queira morar, e era o Rio Grande do Sul, onde já estava acostumado. A rebeldia adolescente durou até a hora do jantar, que foi até onde Lean agüentou ficar sem comer. O garoto saiu do quarto e agiu como se nada daquilo estivesse acontecendo.
Não, eles não estavam entendendo! Não podiam, simplesmente, ir pro Rio de Janeiro. Existia toda uma vida ali. Lean tinha amigos e um amor guardado e escondido. Protegido por cães de três cabeças e outras bestas mitológicas. Como ele ia viver, sem ver Levi todos os dias? Sem falar com ele? O que seria da sua vida? Parecia que o mundo ia acabar, estava acabando. O mundinho de Lean desmoronava. O sol estava ficando velho. Era o fim! O fim.
Calou seus pensamentos. Encheu a boca de feijão, mastigou e engoliu. Na mesa, não falava nada, usava seu silêncio como arma de defesa, tentando parecer vítima. Seus olhos vermelhos eram canhões, seus rosto inchado era a infantaria, que disparavam contra os pais toda a sorte de melodramas que um adolescente é capaz de produzir.
“Lean, meu filho, você precisa entender.” De alguma maneira a “guerrilha” estava recebendo a atenção dos governantes, que se mostravam um pouquinho comovidos. “Filho, você acha que seu pai e eu queremos sair daqui? Nós gostamos do Rio Grande, dos nossos amigos. Aqui estamos perto da nossa família, você tem seus amigos, sua vida, mas precisam do seu pai no Rio de Janeiro.”
“Mãe, eu acho melhor a gente não discutir isso agora. Estamos jantando.” Lean estava se surpreendendo. Estava se saindo um ótimo estrategista.
“Tudo bem, filho. Depois conversamos.” Flávia falou. Cara de taxo, coitada.
Lean estava no computador, em seu quarto, conversando com Susana pela Iternet. Ele contou a ela sobre a catástrofe que se sucedera. Montou outro palco, armou mais um cavalo de batalha. Mas a amiga lhe lembrou de que era o emprego de seu pai e que, mesmo que não lhe agradasse e fosse muito difícil pra todos, não teria outro jeito senão aceitar o novo. Lean ficou um pouco empombado com a amiga, queria que ela, como boa amiga, o apoiasse. Susana disse que não. Que como boa amiga, que era, ela tinha era de ser sincera e falar o que achava, não agradá-lo somente. Ele mandou ela ir dormir! Ela falou: “Ta bom!” e ficou “off-line”. Lean xingou a foto da amiga de “Vaca!”. Sem nem se desconectar ou fechar qualquer janela aberta, o garoto, com raiva, pressionou o botão “power” do seu computador, como quem estrangula alguém. Permaneceu assim, pressionando-o até que num último suspiro, uma luzinha piscou e o computador desligou. Pequenos homicídios cometidos o tempo todo.
Quem ela pensa que é pra vir lhe dar lição de moral? Ela pensava como pais, a bestinha. Susana não tinha nada na cabeça. Tonta! Engraçadinha, ficava dizendo o que os outros deveriam ou não fazer. O nome dela ao invés de Susana deveria ser Moisés, sei lá! Abusada! Era bom demais, né? Ficar lá, do castelinho inabalável dela, dando ordens e conselhos. Não tinha sido o pai dela o transferido. Tinha? Ela ia continuar no seu meio, com as pessoas que ela gostava, com os amigos, a família. Mas Lean ia embora! Ela não compreendia isso? Estupida!
Lean ainda espraguejou mais contra a amiga. Falou um monte de besteiras e poderia ficar horas falando mau da incompreensão da menina, mas sua mãe bateu em sua porta.
“Lean, vamos conversar. Acertar essa história.”
“Não to afim! Não quero falar sobre isso agora!”
“Mas nós precisamos. Tem muita coisa que não quero e tenho de fazer, anda. Já jantou e já até digeriu a comida. Agora, anda logo!”
Baixinho, Lean proferiu algumas palavras ofensivas à mãe. Ela também merecia uma dose do seu furor. Segundos depois estava arrependido dos xingamentos, ela era sua mãe, pombas!
“To indo!” Soltando fogo pelas ventas ele foi. Os pais teriam de ouví-lo. Ah, teriam!
Chegou no quarto dos pais com o nariz mais altivo que o de um mordomo inglês. Sentou na cama, levantou a sobrancelha e disse:
“Hum?” Altivez de um fedelho!
“Primeiro, se desarme!” Sua mãe cortou sua pompa. “Você está falando com seus pais. Não somos Susana e nem Levi!” Lean ficou em silêncio, sentindo sua crista ser cortada.
“Nós tentamos conversar com você, mas você não aceitou o que falamos...” Começou o pai.
“Claro! Quem aceitaria? Você aceitaria isso? Que do nada chegassem pra você e te dissessem pra ir viver num estado em que você não conhece ninguém?” Lean começou todo enfezado.
“E você acha que não me disseram isso? Você acha que eu to rindo à toa com essa transferência? Você acha que sua mãe e eu não sentimos em deixar nossa vida aqui? Que só você está sofrendo? Você não é o Sol! Pode parecer, uma vez que é um adolescente, mas não é! É apenas mais uma das muitas estrelas, meu filho!” Fernando não ergueu a voz um só segundo.
“É, Lean. Parece que você está pensando que só você tem uma vida aqui e só você tem o que deixar pra trás. Nós também temos. Vivemos aqui há muito mais tempo do que você. São coisas da vida, meu filho! Mamãe sabe o quanto é difícil, mas são coisas necessárias.” Lean odiava quando a mãe usava psicologia infantil pra com ele - “Mamãe sabe...”
“Mas vocês não compreendem! Meus amigos. O que vou fazer?”
“Filho, nossa família continuará aqui e nós viremos nos feirados, férias. E seus amigos podem ir nos ver no Rio. E além do mais tem Internet...”
“Ah, mãe! Internet não tem cheiro. Não dá pra abraçar a Internet.”
“São esforços que temos que fazer, filho.” Disse o pai.
“Esforços e, função de quê, pai?”
“Em função da nossa família. Ou não é isso o que somos? Uma família? É difícil pra todos, mas somos uma família.”
“Somos uma família, pai. Então devemos respeitar o espaço de todos, né? É egoísmo a gente ir pro Rio por causa do seu trabalho!” Lean tava chorando.
“Lean, vai ser melhor pra todos nós. Vamos viver coisas novas.”
“Eu não gosto do que é novo, mãe! Eu não tenho esse espírito de marinheiro, de ir vivendo de porto em porto. Não! Eu quero estar ancorado! Eu criei raízes aqui!”
“Tem horas, Lean, que precisamos desarraigar as árvores.”
“Déspotas, é isso que vocês são! Hitler e Mussoline. Franco e Salazar! - Hitler e Franco foram apontados para a mãe, os outros dois foram dirigidos ao pai. “Abusam da autoridade de vocês.” Flávia levantou, parecia que ia bater no rebelde sem causa em sua frente. Fernando fez um sinal com a mão, pedindo que ela relevasse.
“Vai pro seu quarto, agora! Vai dormir e pensar no que você nos chamou. Hitler?! Disso que você chama seus pais?!” Lean levantou. O coitado mais injustiçado do mundo. “Espero que sonhe com as praias do Rio!” Espraguejou sua mãe da porta de seu quarto.
Lean demorou uma eternidade pra pegar no sono. Ligou a televisão, depois desligou. Foi ler de novo Harry Potter, milésima vez. Até que resolveu brigar com a própria raiva e tentar dormir. Foi difícil e quase foi nocauteado, mas acabou vencendo seu oponente e dormiu.
Mas aquela guerra ainda não tinha acabado. Acordou ainda pela madrugada. Estava assustado com tudo aquilo, com a novidade, com o “ir embora” e com o “deixar pra trás”. E, como uma criança que, durante a madrugada, acorda com medo, Lean fez o percurso do quarto dos pais, passou a mão na maçaneta e entrou. Se enfiou no meio dos dois, ali escondido. Achara refúgio. Seus pais acordaram e envolveram o filho em seus braços. Pais nunca são inimigos dos filhos! Pelo menos os de Lean não eram.
Agora sim, vencera a guerra contra a raiva que o impedia de dormir. Um beijo da mãe assinou o acordo de paz. Ainda antes de pegar no sono, Lean se sentiu seguro. Reconheceu que o que o dava segurança e força não era o lugar onde morava ou os amigos que tinha, mas eram aqueles dois fortes que agora o protegiam. E eles estariam no Rio de Janeiro. Teriam, lá, o mesmo lar que têm no Rio Grande. A única coisa que mudaria, seria o clima. Trocariam as baixas temperaturas por picos de quarenta graus! Apesar de doer, a transferência parecia não ser mais um problema.
Pela manhã a família nem parecia a mesma do fim de noite turbulento. Lean pediu desculpas aos pais por ter sido tão incompreensivo, é que na verdade estava com medo. Seus pais também lhe pediram desculpas por não compreenderem o que se passava na cabeça do filho. Fernando foi trabalhar e deixou em casa uma mulher e um filho que estavam, agora, em paz. Lean, ligou pra Susana e conversou com ela, que, mesmo irritada, entendeu o amigo.
Livre de todas as desavenças o coração de Lean sentiu-se apto a se dedicar ao ofício de bater por Levi. Lembrar dele lhe trouxe uma certa dor. Estava tudo muito certo, ia pro Rio, feliz e tudo mais. Mas onde Levi se encaixava? Na sua vida nova não teria espaço pra ele? Lean resolveu não dar tanta importância a um amor que nem mesmo sabia se seria vivido um dia. Porém “não dar tanta importância” não o impedia de tentar. Pegou o telefone e discou o número da casa dele.
“Alô?” Era ele, com voz de quem acabara de acordar. Ai.
“Levi? É o Lean. Beleza, cara!”
“Fala, Lean! Tranqüilo.”
“To te ligando porque eu aluguei um filme e quero saber se você ta afim de ver comigo.” Era uma prática entre os dois, assistirem filmes juntos.
“Beleza! Que horas?”
“Umas quatro, tranqüilo?”
“Às quatro to aí, então.”
“Valeu, vou ta esperando.”
“Até mais, Tchau!”
“Tchau!”
Lean desligou o telefone e foi correndo até a locadora. Precisava alugar um filme. Sua vontade era alugar um filme bem piegas e “água com açúcar”. Queria preparar um clima propenso a confissões, um clima onde o amor pudesse se sentir a vontade pra estar. Ah, se a vida fosse um filme! Beijos de cinema, flores e bombom. Se a vida fosse como os romances nos quais Lean tão avidamente mergulhava. Se a vida fosse escrita por Jane Austen... A vida não é! Mas por mais que pensasse nisso, a amiga esperança, ou a ilusão, como quiser nomear, sempre permanecia, sempre se mantinha. Guardava ainda um feixe de luz. Esperava ainda por um milagre, de que a vida pudesse ser como num sonho no qual mesmo que houvesse bruxas más, também houvessem princesas, príncipes, animais bonzinhos e fadas madrinhas. Lean ainda era alguém protegido pelos sonhos de criança e pelo “Maravilhoso mundo de Disney”.
Falaria! Sim, falaria. Ele estava alí. Era só abrir a boca, era só falar seu nome que ele perguntaria o “o quê?”, e pronto responderia. Lean nem via o filme. Ide ou ego, a quem dar ouvidos? Cadeados nas pregas vogais, era isso que tinha. Cola e esparadrapo! Era só abrir a boca! Era só pronunciar umas palavras! Abria a boca e balbuciava coisas desde bebê. Estava acostumado, sabia fazer isso. Se a boca não fazia, era melhor recorrer aos olhos. Estes também falavam, mas nem sempre eram ouvidos. Ele estava alí, tão perto. Ele esteve ali, tão perto. Esteve, por um momento, perto de saltar, perto de viver um pouquinho e deixou a vida passar como um ônibus que não se conseguiu tomar. Agora era olhar para as costas da vida e esperar que viesse outra vez.
Seria tão mais fácil se Levi dominasse telepatia, que pudesse ler mentes. Ou que pudesse perceber as vibrações do coração apaixonado de Lean. Enamorado. “O fato de fazer desse jeito ser mais fácil, não quer dizer que seja melhor.” Disse-me meu pai.
domingo, 1 de março de 2009
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