domingo, 1 de março de 2009

Capítulo 1: A borboleta

“Ninguém vai saber. Ninguém ta vendo a gente.”

“Não. Pára, por favor”, Lean não entendia aquilo. Não sabia bem o que estavam fazendo. Não queria prosseguir.Tinha medo. Daniel, seu primo, era mais forte e por isso o dominara. Shortes nos joelhos.

“Só um pouco. Você não precisa fazer nada. Deixa que eu faça tudo, não vai doer.” Promessa falsa, mas isso Lean viria descobrir mais tarde, e não muito mais tarde.

Se entregou. Deixou acontecer. Calado. Passivo àquilo e naquilo.

Lean seguiu seu primo mais velho e saiu de debaixo da cama. Diferente, não era mais o mesmo menino. Era ainda menino? Ou menina? Homem, ou mulher? No que se transformava um menino depois de dividir o leito com outro menino? Como se nomeava tal metamorfose? Os dois ficaram calados, não tinham o que dizer um ao outro. Ali só havia o silêncio, constrangedor, seco, quieto. O menino não sabia bem o que sentia.

Saiu dali, fora para a sala. Sua avó olhou-o nos olhos.

“O que tem menino? Parece outro.” Velha cretina, tinha olhos de ver. Sabia de alguma coisa.

“Nada, vovó. Nada.” Lean evitou o olhar da avó miserável, não queria olhar naqueles olhos odiosos.

Era nojenta, a velha, mas tinha razão: era outro, tão cedo, era outro. Seu primo o transformara, fizera dele outra pessoa. Ou, simplesmente, fizera aflorar a pessoa que ele já era e não tinha conhecimento. Quem essa pessoa era não sabia, só sabia que era. Sua mãe veio da cozinha e sentou no sofá, Lean sentiu-se indigno, correu, saiu dali.

No quintal o vento batia no seu rosto. Lean parou de correr, respirou. Abriu os braços, olhou pro céu e girou. Girava tão depressa que o céu era só mais um borrão azul. O menino já não sentia seus braços, eram somente mais um adereço de seu corpo. O mundo estava louco, girara além do que devia. A translação estava descontrolada, estava fazendo acontecer coisas que só deveriam ter acontecido dali a muitas e muitas voltas. Lean girava, como se quisesse se alinhar à translação, tresloucada, vanguardista para um pobre garotinho, agora fadado a ser gente grande.

Estava tonto, e mais tonto e tonto. Não queria parar, sabia o que queria, sua vontade era vomitar. Tirar de si o seu primo. Tirar de sua alma, a marca que o outro deixou. Não agüentava mais, parou. Respirou e vomitou. Bulímico tentando livrar-se do alimento ingerido.

Sentiu o gosto ruim em sua boca, mas não era o gosto do seu primo, era pior. Seu primo tinha um gosto bom. Lean percebeu que Daniel não tinha saído com o vômito. Ele estava ali. Em algum lugar em Lean. Cravado como uma cerca em terreno, até então, sem dono. Como quem visita a lua e finca nela uma bandeira. Bem profundamente, na alma de Lean, Daniel fincara sua bandeira, para sempre. Eternamente.

Estava diante de um poço que tinha nos fundos do seu quintal, olhou-se na superfície deste. Não. Não olhou-se, olhou-o. Aquele no reflexo não era Lean, era alguém novo, um ser diferente. Cheio de medos, culpas, pesares. Antes não era assim. Antes não tinha vergonha dos próprios olhos. Era tranqüilo. O que tinha feito? Tinha se entregado ao primo... Era dele, agora. Sua cabeça pesava, sentia-se muito estranho, diferente. Transformado. Responsabilidades, infância roubada de assalto. A inocência escoando pelo ladrão. Olhar diferente. Maturidade precoce.

“Está fugindo das pessoas?” A voz do sacerdote da circuncisão vinha em sua direção.

“Não”, Lean tinha a voz embargada.

“Então por que não ta lá na sala?”

“Porque a gente fez aquela coisa. Não tenho vontade de ficar lá.”

“Assim são as coisas.”

“Assim são as coisas?! Seu prevalecido!” Lean levantou. Fechou o punho direito e mandou um direto no rosto de Daniel, que não se permitiu apanhar, segurou a mão do primo mais novo e aplicou-lhe uma gravata.

“De novo, né? Acabou nos braços do teu macho outra vez, não foi? Sei que você gosta disso. Você acha bom, não é. Todos já passaram por isso, priminho. E pode dizer: você não gostou?”

“Não.” Mentiu. “No começo. Mas depois, sim, tava bom.” Verdade.

“Então. Não se preocupe. É assim mesmo.”

Lean não se mexeu. Seu primo tinha razão. Ele gostava de estar ali, assim. Nos braços do seu “macho”, como dissera. Daniel soltou o pescoço do garoto, ao invés dele, suas mãos seguravam, agora, a fina cintura em sua frente. O de onze possuía o de nove. E mordia seu ouvido direito, com carinho. Lean nada fazia. Ficava parado, bem quieto. Consentindo com tudo aquilo. Não entendia muito, mas sabia o suficiente pra saber que era bom. Ser tomado como estava sendo. Lean fechou o olhos, sentiu as mãos do outro em si.

“Quer de novo, não é?” Daniel conhecia sua preza.

Lean não respondeu, calou-se e respirou. O mais velho o levou para um matagal no terreno ao lado e lá possuiu seu priminho outra vez. A avó de Lean costumava dizer que Deus não dava asa à cobra, e tinha absoluta razão. Cobras nunca ganham asas. Mas não se pode dizer que nenhum ser rastejante não ganhe asas das mãos de Deus. Existem as lagartas. E Deus não dá asa à cobra, mas dá a lagarta. Um casulo sendo desfeito e de dentro dele saindo um novo ser. Um ser que já era. A lagarta nasceu para ser, só precisava de um tempo pra ganhar asas. Era isso. A lagarta ganhou asas, era alada agora e voaria por aí, por que assim Daniel, “não sei o quê” de Deus, o fez.

Um comentário:

  1. “O que tem menino? Parece outro.” Velha cretina, tinha olhos de ver. Sabia de alguma coisa.
    FODAAAA!!!

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