quinta-feira, 5 de março de 2009

Capítulo 6: Mário

Lean acordou as seis da manhã daquela segunda feira de fevereiro onde teria lugar seu primeiro dia de aula naquela nova vida; não tinha dormido muito bem, devido a ansiedade pelo começo do que seria sua nova vida.

Acordara mau e preguiçosamente. Deixou de má vontade a cama, os lençóis e o travesseiro, queria passar o resto do dia com estes amigos de horas boas. Amigos.

Amizade era uma coisa que Lean pretendia evitar. Não queria mais amigos como os que tivera no Rio Grande; gostaria de encontrar uma Susana, até, mas não alimentava esperanças de que fosse possível. Preferia ficar no seu mundo, curtindo sua própria companhia. Lean percebeu que enquanto vivia só, enquanto tinha pra si seus segredos, era feliz. A presença de um terceiro, na relação Lean e Lean, prejudicou sua vida. Fez mau a algo que estava indo bem. Mas Lean não sabia o que era ir bem, viver escondido, guardado não é lá uma grande idéia do que é viver bem. E quem é que sabe o que é viver bem? Mas o garoto estava com isso na cabeça. Ele mesmo era sua melhor companhia, fez em volta de si um casco, de onde não sairia. Mesmo que batessem, mesmo que deixassem recado na secretária. Não queria se envolver em nada, com ninguém em nenhuma circunstância. Inconstância de adolescente! Fato!

Fitando os olhos azuis no espelho do banheiro, Lean sorriu para si, encorajando a si mesmo. Era um dia diferente na vida dele. Estudou toda a sua vida no mesmo colégio e entrar numa escola onde ninguém o conhecia seria um pouco desconfortável.

Lean olhava uma listagem fixada na parede. Finalmente, encontrara seu nome na lista do 1º ano, turma A.

“Turma A?” Lean, virou-se. E parado a sua frente estava um menino. Moreno, um pouco mais alto que Lean, com cabelos negros e olhos verdes. O garoto ficou sem ação, era muito bonito o outro...

“Ei, rapaz, acorda! Ta dormindo ainda?” Perguntou o moreno sorrindo debilmente.

“É. É sim. Turma A”, desconcertado e perdido em seus pensamentos Lean respondeu a pergunta do outro.

“Eu também. Você sabe onde fica a sala?”

“Não, eu sou novo aqui.”

“Ah, eu também. É melhor tentarmos achar juntos. E... como é o teu nome?”

“Lean, e o seu?”

“Mário. Você tem um sotaque diferente, de onde vem?”

“Do Rio Grande do Sul.”

Os dois procuraram juntos a sala 307, que abrigaria o 1ª ano, Turma A. Não foi muito difícil encontrá-la, afinal, espalhados pela escola, havia cartazes que indicavam o caminho. Caminho que era muito mais fácil se seguido junto de alguém. Tudo era novo, tanto pra Lean quanto pra Mário. Era melhor ser dois, do que um. Lean se queixava consigo mesmo, não devia estar fazendo amizade. Mas era sempre assim: Lean se prometia algo, decidia e depois jogava fora as promessas.

A sala não estava muito cheia ainda, algumas meninas abafaram risos quando os dois entraram. Lean ficou vermelho e Mário pareceu não ligar. Sentaram então, bem no centro da sala, Lean, na terceira carteira e Mário na quarta, logo atrás.

“Eu sou daqui do rio mesmo, De Niterói. Conhece?” Mário falou.

“Ainda não. Sou muito novo. Cheguei mês passado, ainda não fui a um monte de lugares.”

“Não esquenta, nem eu fui. Acontece que meu pai achou que seria melhor morarmo por aqui.” Mário dizia enquanto se distraia percorrendo com os dedos as letras feitas com liquid paper sobre a mesa.

“Por quê?” Lean olhou para ele. Mário exitou. “Ah, me desculpa. Não precisa falar.”

“Ta certo, então.” Mário desviou o olhar. E tentou de maneira muito risível mudar de assunto. “Que saco! Daqui a pouco vão pedir pros alunos novos levantarem a mão e perguntar nossos nomes, de onde viemos de que escola... Isso é chato.”

“É a primeira vez que faço isso. Nunca mudei de escola.”

“Sério?! Não se vê muita gente como você por aí.” E riu, grato de que o novo assunto proposto tivesse sido tão bem aceito.

“Você vem do Sul, não é?!” Perguntou uma das garotas que riram, ela estava sentada na carteira a frente da de Lean.

“Sim. Rio Grande do Sul. Meu sotaque me entregou?” Lean sorriu.

“Huhum. Eu tenho uma prima que mora em Florianópolis.”

“É? Mas aí é Santa Catarina.”

“É?” E fez uma careta. “Fernanda.” Disse esticando a mão direita. “Fernandinha, se preferir.”

“Lean,” disse pegando na mão dela. “ E esse é o Mário.”

“Oi, Mário!” Disse Fernandinha acenando de sua carteira para Mário, que fez um meio e tímido sorriso.

Uma professora chegou na sala e a conversa cessou. Não demorou muito para que Lean, Mário e alguns outros levantassem a mão e se apresentassem. E não só nesta aula, mas na outra que antecedeu o recreio.

“Você não vai sair da sala?!” Fernandinha perguntou a Lean.

“Vou, mas to esperando ele.” Apontou para Mário, que guardava o caderno na mochila.

“Ah, ta. A gente se vê lá em baixo.” E saiu saltitante com sua trança.

“Espivitada ela.” Mário ria.

“Adolescentes!” Lean fazia que não com a cabeça, bancando o adulto decepcionado. Depois riu também.

Depois, na hora de a mamãe contente ir ver, Lean passou pelo portão, mas um vergalhão intruso não o deixou seguir. Ele sentiu a pele do lado arder, Mário olhou pra trás e se assustou com a cena.

“Meu Deus!”

“Calma, não foi nada. So me arranhou.” Disse Lean tirando o vergalhão de dentro da blusa com a ajuda do porteiro.

“Eu não sei o que isso ta fazendo aí.” Falou o homem nervoso. “Podia ter sido pior.” Só Lean sabia como tava ardendo e sangrava um pouco.

“Que bom que não foi nada.” Lean percebeu o tamanho estrago em sua camisa.

“Você vai precisar de outra blusa.” Mário também tinha os olhos no rombo que se formou. “Eu te empresto uma.”

“Você tem uma camisa extra na mochila, ou coisa assim?” Lean perguntou enquanto os dois já estavam andando de novo.

“Não, cabeção. Eu moro aqui perto. Você vem até minha casa eu te empresto uma blusa.”

“Ah, não precisa se incomodar.”

“Não incomoda. Se quiser...”

“Vou entrar no ônibus e descer em na porta do prédio, nem vai aparecer muito.”

“Então tá. A gente se vê amanhã.” E estendeu a mão pro outro.

“Valeu!” Lean apertou a mão de Mário.

Os dias foram passando, e assim, as semanas, logo, os meses, e aquele colégio servia de palco pra mais uma amizade entre dois meninos. Uma amizade muito maior que a de quaisquer outros dois meninos. Eram mais que amigos, eram cúmplices. Mais que cúmplices, comparsas, companheiros. E tudo começara no aglomerado formado no saguão de entrada da escola.

“Praia do canto, hoje, Leão?” Um segredo compartilhado, Mário sussurrava ao pé do ouvido no amigo sentado uma carteira à sua frente, não queria que ninguém o adivinhasse.

“Claro. As sete, beleza pra você?”

“Tranqüilo, cara.”

Leão era um apelido que Mário dera a Lean em função de seu nome. Praia do canto era como os dois batizaram, pra si, uma praia de difícil acesso e sempre vazia. Os dois iam lá pra beber, encher a cara. Tomar uns “goró”. Estava acontecendo de novo. De novo não! Não, não, não! Distraído, Lean, coitado. Não se deu conta, se foi deixando levar.

Sentia falta do amigo, se longe. Gostava do seu cheiro; seu sorriso o agradava, sua voz nos segredos, sua atenção. Ah, não! Laços. Quando deu por si esteva atado num. Mas era um laço bom demais. Aproveitava cada instante com Mário só para estar perto. E foi na praia do canto, quando um Mário um pouco mais feliz do que o normal, gargalhou de uma história sem importância, que Lean parou. Observou o outro e sentiu. Deu por si. Estava amando. Aqueles olhos serrados de tanto álcool, que o olhavam tão profundamente. Lean sentia o coração vibrar em cada momento em que os dois se abraçavam em momentos de “quase queda”, em função da dificuldade de andarem na areia e por estarem alterados.


Capítulo 5: Perdão negado

Estava pronto pra ir embora de vez, seu pai tinha sido transferido e estava doido pra sair daquele lugar que tinha lhe enchido de desgosto e ódio e vergonha.

“Lean, tem gente te chamando!” Gritara a mãe da sala para o filho que estava no quarto.

Pelo tom que a mãe usara e pelo “tem gente” Lean imaginou ser quem ele menos queria ver. A pessoa que ele nunca mais queria ver na sua vida.

“O que você quer?” Lean falou. Estava áspero, rude, mal. Sentia ódio.

“Eu quero conversar com você. Te pedir perdão.” Levi ainda exibia o olho roxo e as outras marcas que Daniel, tinha lhe dado de presente depois do “showsinho” na festa.

“O que você me fez, não tem perdão! Eu não quero te perdoar.”

“Por favor, eu fui um imbecil. Eu não soube respeitar você, não te dei o valor que você merece, o que fiz foi horrível. Esqueci que antes de tudo somos amigos. Não te respeitei, fui um idiota.”

“Dentre tudo o que você falou, sou obrigado a concordar com a última: Você é um idiota.”

“Me perdoa, vai. Quero ser seu amigo de novo.”

“Não posso. Não vou passar por cima de mim, da minha vergonha na cara e da minha auto-estima. Não! Sei que Deus ensina que devemos perdoar, mas desta vez vou pedir que ele faça vista grossa. Ao que Ele me atenderá, pois ele viu tudo o que você fez comigo. Fui humilhado. E não te perdôo. Você vai viver a vida toda com o que você fez perturbando sua mente.”

“Pelo amor de Deus, Lean! Entenda o meu lado: eu achei aquilo tudo muito estranho... não é todo dia que coisas assim acontecem, não é? Nossa amizade tem de ser maior que isso.”

“ “Pelo amor de Deus”?! “...nossa amizade”?! Você não pensou em nenhuma destas duas coisas quando... quando decidiu me humilhar, me destruir. Você não teve amor a Deus, você não foi meu amigo. Foi meu inimigo! Um inimigo baixo e mau-caráter. Eu não vou passar por cima do meu orgulho. Eu morro de gastura só de imaginar você apertando minha mão e recebendo um sorriso meu. Eu morro, mas não perdôo você. Eu posso ir pro inferno por isso, mas irei em paz. Você foi mau comigo, mas eu serei pior com você. Vai morrer com o peso do que fez. E vá embora. Eu nunca mais quero olhar na tua cara suja.”

Despedidas, se um dia foram agradáveis é porque os que se despediam eram desagradáveis. “Deixar pra trás” era algo difícil. Mesmo com tudo, mesmo com aquelas coisas. Com a traição e a humilhação. Era difícil ver o rosto de Susana, de Marcelo e de Daniel ficando pra trás. Deixar! Cortar as raízes doía muito. Uma lágrima se fez nascer nos olhos de Lean, percorreu seu rosto e foi bruscamente secada com a mão do garoto. Era melhor deixar de olhar pra trás e passar a ver o mundo que o vidro dianteiro do carro do pai revelava. Lean tacou os fones nos ouvidos se afundou em seu “diskman”, ouvindo velhas músicas de pular, e num livro da Jane Austen, que já tinha lido no mínimo umas cinco vezes.

Janeiro no Rio de Janeiro, ah! “Isso é que é vida”, pensou Lean colocando a cabeça pra fora da janela do carro. O vento beijava seus cabelos e os fazia voar. Estavam passando pelo Flamengo e Lean ficou maravilhado ao ver o Pão de Açúcar ao vivo.

“Não é à toa que chamam de Maravilhosa!” Observou Flávia.

A belezas das pessoas na Av. Atlântica. Gente bonita. Viva! Com cor. Isso parecia um sonho. Chegar ao Rio. A Av. Vieira Souto e sua praia maravilhosa. Não seria uma tarefa tão árdua se adaptar àquele lugar.

Capítulo 4 -" Good by my friend"

“Good bye, our FRIEND”, esse era o letreiro fixado na parede do salão alugado para a festa de despedida de Lean, que teve lugar em vinte e sete de dezembro. Ele estava bem contente com a surpresa preparada pelos seus melhores amigos.

Só uma coisa era capaz de minimizar esta alegria, e era talvez a mais importante e a que tinha peso dois: seu amor irrecíproco. Ele não sentia o mesmo por Lean, Levi não o amava. O garoto assim imaginava, por que não via o amigo desde... Será que ele não apareceria ali, nem na sua despedida?

“O que ta, fazendo aí no canto, garoto?” Era Susana, sua amiga favorita.

“Nada. Só estou aqui,” Lean respondeu e riu.

“Isso dá pra ver.” A garota sentou ao lado do amigo no pufe onde ele estava. “Amigo, eu preciso te dizer uma coisa. Esse não é o momento certo, mas é que fiquei sabendo ontem e não sabia o que ia fazer. Pensei bastante essa noite e resolvi te contar.” Ela estava muito séria e apreensiva.

“Amiga, se você estiver grávida, tudo bem. To contigo! Como sempre.”

“Não, meu amor, não se trata de mim.” Seus olhos fugiram dos de Lean.

“Então é sobre mim?” Lean estava ficando nervoso.

“Sim, e eu to muito chateada, por nunca ter confiado em mim.”

“Fala logo o que é?” A boca do garoto estava ficando seca. Podia imaginar o que seria, mas como fora possível? Levi?

Antes que Susana pudesse dizer qualquer coisa a música parou e o silêncio repentino foi quebrado por um barulho muito incômodo de microfonia, que invadiu o lugar.

“Senhoras e senhores, é com muito prazer que apresento a vocês a festa de despedida do meu grande amigo Lean.” Era Levi. “Vem aqui, Lean. As pessoas querem te ver.”

Susana falava alguma coisa, parecia desconfortável, mas Lean não ouvia nada pois tinha muita gente falando e acabou por ir até um mini palco, no qual Levi estava. Aprenderia que é preciso parar e ouvir. Agir vem depois.

“Esse meu amigo... O que falar dele?” Recomeçou Levi, agora que um Lean muito envergonhado estava postado ao seu lado na pequena plataforma. “Sei que é uma pessoa muito fina. Delicada, pra ser mais exato. Contagia a todos com sua alegria. Sim, ele é um rapaz demasiadamente alegre. É, meus caros, Lean é um menino alegre. E sei perfeitamente dessa alegria toda.” Os olhos de Lean estavam vermelhos, queria sair dali correndo, mas não tinha coragem de passar por todos aqueles colegas de escola e de vizinhança, seus primos também estavam ali. “Sei do que estou falando, mas eu gosto dele. Pode ser o que for, mas é meu amigo. Outro dia chegou com um papo esquisito, falou que tava apaixonado por mim. Como todo mundo sabe, eu sou macho. E falei: “Olha, cara, essa não é minha praia não, mas você vai ser feliz eu sei.”. Aí ele ficou meio triste e perguntou se eu não podia dar uns pegas nele, pra ele ficar feliz. Eu disse que não fazia essas coisas, mas continuamos amigos até hoje...”

As lágrimas de Lean faziam “gato e sapato” de seus olhos, que não conseguiam contê-las, todos os olhares virados para Lean, que chorava feito um aniversariante que não pôde comemorar o aniversário com quem ama.

“Vem, primo, vem.” Era Marcelo, seu primo mais velho. Pegou Lean pela mão e saiu dali, atrás deles estavam Susana e Tábata, a noiva de Marcelo.

Chegaram até o estacionamento.

“Lean, olha pra mim.” Era Marcelo. “Eu te amo, viu? Amo você. E aquilo que eu disse sobre querer ter nascido seu irmão mais velho ainda ta de pé. Você vale ouro, guri.” O mais velho abraçou o primo. “Olha, até a hora do almoço de amanhã, meu tio e minha tia já vão ta sabendo de tudo, então eu acho que você deve contar agora, pra que eles não saibam por gente que não tem nada a ver.”

“Eu sei, mas é que não tenho coragem.” Falou Lean entre um soluço e outro.

“Se quiser eu vou lá contigo, e te ajudo. Quer?” Lean fez que sim com a cabeça. “Eu vou levar vocês duas em casa e vou pros meus tios.”

Entraram os quatro no carro, Lean foi atrás abraçado com Susana, que lhe falava palavras de encorajamento. O carro parou em frente a casa de Susana e depois no portão de Tábata, e finalmente estacionaram em frente à casa de Lean.

“Vamos lá?” Marcelo olhou para o primo.

“É, seja o que Deus quiser!”

“Que Ele te proteja.”

Entraram na casa, já passava de meia noite e os pais de Lean já haviam ido deitar, mas esse problema foi resolvido com umas batidas na porta do quarto deles.

“Mãe, pai, eu preciso falar com vocês.”

“Entra, filho, estamos assistindo TV.” Soou a voz da mãe.

“Marcelo, você fala por mim?” Lean estava trêmulo, seu coração saltava-lhe do peito, sentia ânsias de vômito. Os dois entraram no quarto.

“Marcelo?!” Espantou-se o pai de Lean.

“O que aconteceu? Onde ta todo mundo?” Flávia levantou-se às pressas da cama.

“Calma, tia, estão todos bem. Não viemos falar de acidentes ou coisas do tipo. O assunto que vim falar trata do Lean.” Marcelo acalmou a tia.

“Então pára!” Respondeu uma enérgica Flávia. Parecia saber o que viria. Ela era mãe.

“Como assim, tia? Não posso falar do Lean?”

“Não. Não você. Mas ele. Olha, Marcelo, te admiro muito pelo que está fazendo e pode ter certeza que vou lembrar disso pra sempre. Te agradeço pela dedicação ao Lean, pelo atenção para conosco, até pela sua coragem em vir até aqui, mas eu gostaria que você esperasse lá fora. Lean tem algo pra me contar e deve ser ele a fazer isso.” A mulher sorriu para o sobrinho, que retribui num sorriso chocho, e saiu do quarto. Ela pressentia a bomba. O clima, o olhar do filho, o peso com que falavam as coisas, a calma que tentavam manter. Alguma coisa realmente importante, sobre Lean, eles falariam. Mas tinha de ser o Lean, e somente ele.

“Então, filho, o que tem pra falar?” Perguntara Fernando.

Lean, que sentara na cama de seus pais, olhava pro chão como se aquilo fosse a única coisa existente no mundo.

“Lean, vocÊ roubou alguma coisa?”

“Não, mãe.”

“Matou alguém?”

“Não, mãe.”

“Fez mal à alguma pessoa?”

“Não.”

“Usou drogas?”

“Não, mãe!” A última lhe causou uma certa impaciência.

“Então não vejo nenhum outro motivo que fosse capaz de fazer você olhar pro chão.” Falou a mãe que tentava dar ao filho um porto seguro, que ela mesmo parecia não ter. A mulher estava sem chão, mas não queria passar esse tremor por filho.

“Aqui com você, filho, só há sua mãe e eu, não somos estranhos, somos seus pais. Não precisa esconder os olhos de nós.”

Lean ainda não consegui olhar nos olhos dos pais, sabia o que tinha de falar e sabia que a reação deles não seria a melhor.

“Lean, seja forte. Seu pai e eu conhecemos você desde que nasceu. Você é parte de nós. Tudo o que precisa fazer, é olhar nos olhos de seus pais e dizer o que quer que seja.”

Pela primeira vez, naquela noite, Lean olhou nos olhos da mãe e depois nos do pai. “Pai, mãe,” ele praticava o olho-no-olho ora com um, ora com outro, “eu...” as lágrimas corriam-lhe pela face, seus pais pareciam super tranqüilos, mas Lean sabia que aquela tranqüilidade estava amplamente comprometida. Lean buscava um eufemismo capaz de ajudá-lo. “Eu... eu não gosto de meninas. Eusouhomossexual.” Rasgou o verbo.

Sua mãe parou de chofre. Flávia fechou os olhos. Rezou por forças que viessem de sabe lá onde. Seu filho, não!

“Um dia o médico me disse: é um menino. Eu chorei, Lean. Chorei pois era tudo o que eu queria. Um filho.” Ela fez questão de marcar o “o” da desinência de gênero.

“E você vê alguém diferente de um filho aqui?” O garoto se armou, suas sobrancelhas estavam indignadas.

“Sua mãe não quis dizer isso, Lean.” Fernando tentava apaziguar o que poderia virar uma bomba.

“Meu filho, me entenda: eu comprei um enxoval azul, carrinhos, bolas... Sonhei com o serviço militar, meu menino fardado, pára-quedista. Com uma nora e netos. Mas você foi crescendo e eu tive de admitir que não. Que não seria como no meu sonho. Nada. Eu não queria enxergar isso. Não!” Flávia jogava os cabelos louros.

Dentro de Lean um motim crescia. O que ela achava? Pretensão demais. Ele não era menina!

“E eu brinquei com todos as carrinhos que você comprou”, Lean ficou de pé. “Jjoguei com todas as bolas que você me deu. Quem foi que te disse que não posso servir à pátria? Não virei mulher; eu não nasci mulher. Eu sou o mesmo Lean de sempre. Ah, e se você não notou, a blusa que estou vestindo é azul!” O menino importado de Vênus alterou a voz.

“É difícil. Uma mãe não está pronta pra isso. Você não tem idéia, meu filho, do que é criar um filho acreditando que ele é uma coisa e de repente esse filho se mostrar outra completamente diferente...” Flávia chorava lágrimas de frustração.

“Mãe, eu posso não saber o que é criar um filho nessas condições, mas eu sei o que é crescer nelas. É difícil, mãe. Eu é que sei. Crescer achando que é uma coisa e depois entender que você é outra.” Lean também chorava sentado na cama de novo. “Eu não sou um monstro. Ou sou? Me digam. Me ensinem. Sejam meus pais!” O garoto clamava por paternidade, queria uma luz, um caminho, um “como fazer”. Mas nem sempre há.

“Você não é um monstro.” Fernando falou. “Você é o meu filho. E o filho da sua mãe. Nosso.” Sua voz era bem calma de pessoa centrada, coisa difícil de se ver. “Do mesmo jeito que pra você foi difícil se perceber... assim, pra nós também é. Mas você teve tempo de digerir essa história. Nós não estamos tendo. Acabamos de saber que nosso filho não é como esperávamos que ele fosse.”

“E o que esperavam que eu fosse?!” Ironia e caras e bocas.

“Filho, se desarma.” O pai foi bem sério e calmo. Lean sentiu vergonha. “Nós precisamos de tempo. Tempo pra entender o que se passa na sua cabeça, pra aceitar o que sempre soubemos.”

Flávia chorou por isso. Sempre soube, só faltava a certeza. Ele era seu filho, caramba! Pais conhecem seus filhos. Sabem de tudo, sempre. Escondem. Fingem. Abafam. Mas sabem! Lean, de crista abaixada, olhou pros detalhes do lençol, boa companhia, boa fuga.

“Filho, você nos dá esse tempo?” Flávia pedia ao filho. “Nós queremos estar com você, como em todos os momentos, mas estamos frágeis agora. Não estávamos prontos.”

“É, Lean. Deixa a gente respirar.” Fernando colocou a mão no ombro do filho.

Lean olhou a mão do pai em seu ombro. Seus olhos se encheram de lágrimas que saíram desfilando pelo seu rosto. Queria que os pais dissessem coisas diferentes. Queria que fossem capazes de entendê-lo, de compreender tudo. Eles eram pais, caramba! Tinham que ajudar os filhos é assim que acontece. Tinham que estar prontos. Ter um filho é isso: estar pronto. Se Lean tivesse quebrando a perna, não estariam prontos para um hospital? Se tivesse engravidado uma menina, não estariam prontos pra conversar com a família dela? Porque não estavam prontos agora?

“Eu posso deixar vocês respirarem. Mas quando eu vou respirar?” Copiosamente ele chorava. Soluçava. “Eu preciso de vocês, mas do que vocês precisam de tempo. Não posso dar tempo a vocês. Eu preciso de vocês agora! Agora! E não é daqui a um minuto. Não tenho tempo pra dar. PRECISO DOS MEUS PAIS!” Fernando puxou o filho para um abraço. Os dois choraram juntos. Flávia se uniu ao abraço. Os três choraram juntos.

“Eu sei quem é você! Todas as mães, no fundo, no fundo, são agentes do FBI; e a sua é uma das boas.” E riu secando os olhos, com a classe de sempre. “Não precisei mexer nas suas coisas, bisbilhotar agendas, celular, computador... não cacei no seu e-mail, nem pelo seu quarto. Apenas fui, e sou, sua mãe. Eu te trouxe ao mundo, te alimentei, cuido de você e vou cuidar, até quando eu puder. Enquanto você estiver debaixo das minhas asas, essa galinha velha, aqui, vai cuidar de você. Eu me orgulho de você, Lean. Quantas mães por aí, que tem filhos homossexuais, que não podem ouvir seus filhos falando isso? Muitas fuxicam a vida do filho, contratam detetives, fazem muitas coisas. Mas eu devo ser muito iluminada, ouvi. Pude ouvir da sua boca.”

Lean deitou-se entre os pais e contou aos dois o acontecido na festa e ficaram preocupados com o que aconteceria, com o que a família teria de enfrentar. Lean preferiu não contar detalhes de seu momento com Levi. Aquilo esperava que ficasse entre os dois, visto que Levi não contaria pra ninguém o que tinham feito.

Adormeceu abraçado com seus progenitores, naquela noite. Teorias e teorias. A prática é quem leva a perfeição. Se fossem-lhes dado tempo, esse tempo não acabaria. Prazos, fazem as pessoas se enrolarem. Endividam. Fazem prestações não serem quitadas. À vista é o que há. Coitado de Marcelo. Dormiu no sofá. Uma almofada como travesseiro e um cortina como lenol.

“...Eu faria qualquer coisa pra ter você, nem que fosse só hoje.” Levi lembrava das palavras de Lean e sentia-se aliviado, isento.

* * *

Eram ainda sete da manhã e o telefone já tinha tocado no mínimo umas oito vezes. Parentes e amigos próximos querendo saber detalhes e perguntar como as coisas estavam. Pessoas sem noção: uma hora daquelas! Ninguém nem tinha morrido. Só se liga nessas horas quando alguém morre!

"Flávia, eu soube do que aconteceu com o Lean. Como ele está?" A mãe de Fabrício, um dos colegas da escola de Lean.

"Ah, Sandra, ele está bem. Um pouco triste por ter tido a confiança traída, mas fora isso ta tudo bem com ele."

"Que bom." Pelo tom de voz que Sandra usava, parecia que estava falando com uma criança de três anos que acabara de ficar órfã. Ele pisava em casca de ovo, e com medo de quebrá-las. "E vocês como estão? Vão fazer o quê?"

"Nada. Por que deveríamos fazer alguma coisa?" Flávia alterou um pouquinho a voz.

“Ah, você sabe como é, né? Tentar reverter isso. Ele é muito jovem e ainda dá tempo de curar e ...” Quem era ela? O que ela estava dizendo? O sangue de Flávia foi lhe subindo pela cabeça! Quem ela pensa que é pra falar que seu filho era um doente?!

"Sandra, muito obrigado pela atenção e o Lean não está doente! Preocupe-se com os seus filhos. Tchau!" A mãe de Leãn desligou energicamente o telefone na cara da outra.

Nem dois minutos se passaram e o telefone toca de novo.

"Oi, Flávia. É a Lúcia." Lúcia era a irmã de Flávia e mãe de Daniel.

"Ai, Lúcia!" A vontade que tinha era de desabar no colo da irmã mais velha. Já tinha recebido tantos telefonemas hostis e curiosos, que ouvir a voz de alguém como Lúcia, perecia um refúgio. Um abrigo. Adulão!

"Irmã, como ta tudo aí. O Daniel me falou de ontem."

"Ta tudo indo. O Lean ta dormindo ainda, lá na minha cama. Ele dormiu com a gente ontem."

"Fiquei indignada. Olha, como o Levi fez isso, né? Mas o Daniel disse que "meteu a porrada" nele."

"Ai, meu Deus. Ainda vou ter problemas com a Regina por causa disso."

"E qual foi a reação do Fernando?"

"Foi muito tranqüilo, ele está do lado do Lean. Na verdade a gente já percebia isso. Ele é nosso filho."

"Quer que eu vá ficar aí?"

"Não tem necessidade, Lúcia, se precisar eu te chamo."

"Ta bom. Manda um beijo pro Lean e diz pra ele que a gente aqui em casa também ta com ele."

"Brigada, Lúcia. Tchau."

Flávia já estava caminhando pra cozinha, quando mais uma vez a campainha do telefone a tira de seu rumo. Meus Deus que desespero! A mulher estava ficando louca!

"Alô." Disse Flávia.

"Oi, por favor, a mãe do Lean."

“Sim, é ela.” Os olhos de Flávia encenando impaciência.

"Aqui quem ta falando é a mãe do Gabriel, que estuda com seu filho. Eu quero te dizer que não é do meu agrado que meu filho ande com o seu."

"Querida, eu quero que você pegue tudo o que te agrada e o que não te agrada e enfie nessa sua boca nojenta. E por favor, esquece o meu filho!" A leoa rugia feroz! Marcelo, que acordara completamente dolorido, no meio da conversa, pedia a tia que tivesse calma.

Lean acordou e sua mãe achou melhor não contar-lhe sobre nenhum dos telefonemas. Só passou o recado de sua tia Lúcia.

"Filho, vai na padaria comprar um pãozinho pra gente, vai. Seu pai foi trabalhar e esqueceu de buscar."

"Não quero ir na rua, mãe. Tenho medo do que pode acontecer. E se todo mundo já estivar sabendo?”

“Eu posso ir, tia.” Marcelo se mostrava pronto em ajudar Lea. Exatamente como um irmão mais velho, sempre foi assim. Marcelo protegia Lean em tudo.

"Nada disso! Você não pode ter medo. Vai ficar em casa a vida toda? Hum? Vai se esconder pra sempre, filho?" Flávia acariciava o rosto do filho. "Você não tem do que se envergonhar." Ela estava se surpreendendo.

"Não tenho, mãe, mas..."

"Sem mais! O dinheiro está em cima da mesa da sala, vai. Essa hora o pão tá quentinho." Sua mãe lhe sorriu, um sorriso que tinha gosto de coragem.

Lean pegou o dinheiro em cima da mesa, girou a maçaneta abriu a porta e respirou. Dentro de segundos estaria entregue a um purgatório. Olhares de pedras, expressões de inquisição, enforcamentos verbais. Pagou a Caronte as duas moedas e no seu barco navegou nas amargas águas de sua vizinhança. A cada passo tremia mais. Tinha medo do que as pessoas falariam. O primeiro a aparecer naquela manhã foi Nestor, o pai de Gabriela, uma colega da rua. Os olhos do homem fitaram Lean e seu rosto se transformou. Parecia que o homem estava vendo um assassino impune. Lean tentou não lhe dar atenção, mas o homem cuspiu no chão. Lean deu meia volta. Não queria mais essas cenas, e sabia que as teria.

"Está fugindo das pessoas?" Essa pergunta já lhe fora feita antes. Daniel passou o braço pelo ombro do primo.

"Daniel, pára com esse deboche." Lean refazia o caminho de casa.

"Não to debochando de você, Lean. Onde você tava indo que voltou?"

"Eu tava indo na padaria, mas..."

"Esse vagabundo velho te sacaneou? Vem, vamos na padaria, eu vou com você." Lean relutou, mas o poder de Daniel sobre ele sempre fora mais forte. "Vamos, primo! Não tenha medo dessa gente. Eu to do teu lado."

“Tem mais é que está, né? Isso é tudo culpa sua." Lean disse enquanto eles caminhavam rumo a padaria.

"Culpa minha? Não! Eu vejo as tendências e desenho as roupas. Não invento a moda! Ah, nem te falei. Quebrei a cara do babaca ontem. Ele tava lá, rindo de você, se sentindo o vitorioso. Mandei um voadora, derrubei o panaca e sai esmurrando! Até sangue do nariz do infeliz eu tirei, vai ficar com olho roxo pra aprender. Ninguém mexe contigo, não!"

"Obrigado?" Lean não tinha certeza do que sentir.

Alguns outros olhares maliciosos e cochichos, mas não foi tão horrível quanto imaginara. Ir à padaria não foi como a ido ao Calvário. Se não fosse Daniel, teria desistido no meio do caminho e pensaria pra sempre que sua vida seria assim. Ia ter dificuldades, umas aqui e outras ali, mas teria momentos de estiagem e teria pessoas ao seu lado. Cresceu com um pouquinho de aversão a Daniel, mas seu primo, pode perceber, só lhe queria bem e lhe amava. Chegou em casa com o pão, quente como a mãe quis. Troféu de uma tarefa árdua. Flávia preferiu não perguntar como tinha sido, era melhor deixar que o filho voasse com suas próprias asas, um pouquinho. Pais costumam super-protegem filhos excepcionais. Flávia não queria dar esse tratamento ao filho.

Naquele manhã tomaram café juntos, os quatro. Flávia, Lean, Marcelo e Daniel. Um pouco depois, Susana ligou.

"Lean?"

"Não, é o Marcelo."

"Ah, Marcelo, é a Susana. O Lean ta aí?"

"Vou chamar, só um minuto." Fora do telefone: "Lean, Susana!"

"Oi, amiga." Lean sentia prazer em falar com ela.

"E aí, garoto? Como vão as coisas por aí?"

Lean contou pra amiga o que tinha acontecido depois que chegou em casa. Como os pais reagiram e tal, marcaram de se ver á tarde pra reverem a história e praticarem amizade. Isso é bom. Veriam filme de menina juntos! Lean era bom em futebol, mas também era bom no assunto “filme de ver sorrindo”.

Uns dias um tanto turbulentos os que Lean teve. Amigos virando as costas. Mostrando sua face de simples colegas. Parentes de narizes torcidos. O "adeus" do cartaz da festa de despedida acabou sendo um profeta, anunciando as novas. Amizades acabando, amizades se despedindo. Dando um adeus. Nem todos os amigos de fato se voltaram contra Lean, mas seus pais os obrigavam a não falar com ele, a não andar com ele, a não amá-lo com estavam acostumados. No time dos que dizem contra a homossexualidade, jogam aqueles que defendiam que a Terra era plana. Idéias antiquadas, intoleráveis e de muito mau gosto e "umbiguismo"! O meu, o meu e o meu. Eu. Meu. Meus interesses. Meu grupo. Meu meio. Meu pensamento. Minha etnia. Meus irmãos! Meus iguais! Pedras nos outros!

Nunca um Ano Novo fora tão cheio de verdade para Lean. Seria sim, um ano todo novo. Um outro Lean entraria em 2004.

Estavam todos reunidos na casa da velha que o menino venusiano aprendera a amar, sua avó. Seus tios, e tias, primos e primas. Toda a família esperava a chegada do novo ano. Lentilha pra dar sorte. Rabanada! Carne de porco. Peru. Jovens aproveitando pra tomar Champangne na presença dos pais sem serem repreendidos. Arroz de forno e farofa. Família comum. Família mundial. Matriarca viúva. Seus filhos e netos. Casais divorciados. Primos sem se falar. Primos de namoricos escondidos. Tias bêbadas chorando no fim da noite. Fofocas e intrigas. Alguém às vésperas de um casamento. Um casal perfeitinho. Uma briga de casal. Crianças pentelhas gritando e correndo. Adolescentes risonhos e falando de música. Religiosos. Espirituais. Sérios. Risonhos. Uma árvore de natal e um gay - um, pelo menos até onde se sabe. Retratos de famílias. Canadenses, francesas, búlgaras, angolanas, judaicas, japonesas, australianas, mexicanas, brasileiras, indianas, indígenas, gregas troianas e romanas, tibetanas, cabo verdianas, americanas e chilenas, marcianas, sagradas, jupiterianas. Famílias! O que se pode ter certeza é de que tudo o que acontece, "acontece nas melhores famílias!" Foi o tio Cláudio quem soltou os fogos à meia-noite. Abraços e beijos e o coro que dizia: "Feliz Ano Novo!" Pra quê Times Square? Pra quê Copacabana? Estavam em casa. Estavam em Família.

Capítulo 3: Abrindo o jogo - Levi

Ou se conta ou se fica em silêncio.

Ou se tem certeza ou se mergulha na dúvida.

Ou mostra a cara ou fica guardado.

Ou diz que ama ou cala-se.

Ou aproveita o amor ou fica na dúvida.

Ou sente o gosto do desamor ou fica na dúvida.

Ou diz ou não diz.

Ou isto ou aquilo.

Ou aquilo ou isto.

Não dá pra ficar escolhendo o dia inteiro.

E nem por uma vida inteira.

As malas estão feitas.

E a transferência decretada.

Como era costume entre os amigos da Rua Diná Moura, estavam todos na rua àquela hora. Era Natal, e a tradição era de depois de cearem com a família, irem para a rua ficar de papo pro ar até quando agüentassem.

Naquela noite feliz, Lean foi o primeiro a sair para a rua. Ele sabia o que queria fazer e queria aproveitar toda e qualquer oportunidade de estar a sós com Levi. Mas logo de cara, suas expectativas foram quebradas. Christian, um de seus amigos, foi o primeiro a vir, depois dele. Seria essa decepção um sinal vermelho? Uma simbologia que refletisse a decepção ainda maior que teria naquela noite? Mas não queria pensar nisso, não quis dar trela a maus presságios.

Depois de algum tempo conversando com os amigos, foi que o coração de Lean disparou. Lá estava o bom velhinho, talvez invisível, pois tudo o que Lean via era seu presente caminhando pela rua.

Lean não sabia se por sorte, acaso, ou ajuda divina, todos foram indo embora aos poucos, até que às três da manhã só restavam Levi e ele sentados na calçada. O menino tremia mais do que nunca agora. Um pecador perante um padre, querendo saber sua penitência depois de confessar o alvo errado.

“Levi,” Lean o chamou e olhou para os cadarços brancos de seu tênis preto.

“O quê?” Levi já estava com os olhos serrados, juntaram-se o sono e todas as bebidas alcoólicas consumidas pelo jovem. Lean não sabia explicar, mas aquele estado, no qual se encontrava Levi, o apetecia ainda mais em relação ao garoto.

“Eu gosto de você.” Talvez o álcool que corria em suas veias tenha lhe ajudado nessa tarefa tão árdua e que há muito vinha sendo adiada.

“Ai, meu Deus, lá vem papo de bêbado. Agora vai começar a chorar...”

Lean puxou o outro e aproximou o rosto dele ao seu. Seus olhos se encararam por um tempo e a bebedeira de cada um tomou conta para que não dissessem nada, apenas se olhassem. Olhos nos olhos. Os narizes quase se tocando. Na sua pele, Lean sentia a respiração quente do garoto que mais amara em toda a sua vida. Que era vivida há longos quatorze anos.

“Não é papo de bêbado! Eu sou apaixonado por você. É isso. Eu sou gay. E amo você, o meu melhor amigo.” Lean ainda olhava nos olhos de Levi. Cara a cara.

“Pera aí, cara! Quê que ‘cê ta falando? Tu me amas? Merda! Num sou viado, não!” Levi se afastou de Lean.

“Não tem problema, eu te amo assim mesmo. Eu faria qualquer coisa pra ter você, nem que fosse só hoje.” Lean tinha esperanças.

“Isso vai fazer de mim um viadinho como você?”

“Não. Você vai ser o “homem”.”

“E você a “mulherzinha”.”

“Se assim preferir chamar...”

“Vem. Meus pais estão dormindo e minha irmã foi passar o Natal com o namorado. Ta tudo tranqüilo lá em casa. Mas vou te avisar, ninguém pode saber! Ninguém! Nem a Suzana, sua amiguinha.”

“Ta bom. Prometo nunca falar.” Aquilo não podia ser verdade. Parecia um conto de fadas. Um sonho! Mas os despertadores costumam ser cruéis.

Estamos juntos. Nossas bocas perdidas num beijo úmido, fazendo nossos lábios deslizarem uns nos outros e nossas línguas brincarem de luta livre.

Não acredito que estou aqui. É tudo muito confuso, é outro homem. Não uma menina. Mas um homem. Deus. O que Ele pensa disso? Sei que é bom. Sei que o quero. Quero tê-lo em meus braços e fazê-lo meu. Ele é meu. Está preso a mim por sua paixão.

Dou lhe um beijo, e outro beijo e outro, não quero parar de beijá-lo. Sua boca é suave e se encaixa na minha perfeitamente. Fomos feitos um para o outro. Não. Não pode ser!

Ele é doce, parece estar gostando, o meu segundo. Eu não quero mais nada. Não poderia querer. Eu o tenho, aqui, comigo. Meu sonho, realizado. Valeu a pena todos os anos de “sapatinhos” na janela. Tranqüilo e calmo, assim se mostra. Cauteloso e mui cuidadoso. Tem carinho e sabe me ter.

Eu não acredito no que estou fazendo. Ele está aqui, sendo meu. Sua orelha visita minha boca e seus gemidos tocam uma música suave. Uma serpente ofereceu-lhe um fruto indevido, ele comeu, e comigo compartilhou. Meu Deus!

Seus olhos nos meus olhos me fazem lacrimejar, seus dedos vêm secar. Eu o amo. Eu sou dele. E agora, por inteiro, estou me tornando dele. E sem dor, tamanha sua cautela e atenção. Ele é perfeito. Me ama? Estou conseguindo conquistá-lo? Não posso saber. Creio ser só uma presa. Um objeto de prazer. Não. Não quero crer assim. Tenho fé. Fé e esperança.

Somos um só, agora. Seus olhos me olham com candura, tenho medo de ferir-lhe a alma. Mas não o quero. Quero o agora e nunca mais. Agora, ele é tudo o que eu quero. Amanhã será outro dia. Vejo o me olhar como se eu fosse seu rei, seu senhor. Entrega-se a mim, ele, o meu único. Estou nele. Ele é meu.

Ele me beija. Me trata com carinho. Está em mim? Está “na minha”? Consegui? Não sei. Mas está me beijando. Ele me abraça e me beija a nuca. Sou dele, só dele. Sua mão envolve minha cintura, posso dizer que sou feliz. Tenho-o. Até quando?

Caio em cima dele, estou farto.

Sinto seu peso, estou contente, estou feliz, extasiado. O nirvana é aqui.

Beijo o seu cabelo e de novo sua orelha. Saio de cima dele, deito de lado e o ponho na minha frente, o abraço, no que chamam de conchinha.

Assim adormeceram os dois naquela manhã. Manhã feliz! Ninguém interrompeu. Ninguém atrapalhou. Foi tudo lindo. Um e o outro, estavam os dois felizes. Mas não compartilhavam o mesmo pão. Um queria um simples pão as mo, e o outro buscava croissant.

A vida não é algo fácil. Quem disse isso, em qualquer circunstância, não passou de um mentiroso. Toda maneira de vida exige um preço, um preço justo a ser pago. Ser homossexual tem um preço, ser heterossexual tem outro, ser eunuco também tem. A vida cobra e muitas vezes cobra caro. Há que se dar a César o que é de César, a Deus o que é de Deus, e à vida o que é da vida. A vida... vá entender. Alguém é fecundado, e depois que se fecunda, tudo o que se tem certeza é de que morrerá. A vida é um barco, pequeno e frágil, lançado num mar bravio, sem vela, sem remo, sem porto certo de chegada. Pra quê isso tudo?! Pra quê todo esse devaneio? Sei lá. São cinqüenta minutos do dia dois de janeiro, estou semi-bêbado e com muito sono – fui ver fogos ontem.

O garoto de Vênus acordou solitário na cama de Levi. Por um instante sonhou que o outro teria ido preparar-lhe um café da manhã e fosse trazer numa bandeja... Sonhos! Lean continuou deitado pensando na noite que tivera. Finalmente fora do seu amado. Pertenceu a ele. Seriam assim pra sempre os dois? Ficou ali, ainda deitado, sentido o cheiro de Levi no travesseiro do garoto, pensando em como tudo era bom. Respirou fundo e sorriu para a forte luz vinda da janela. De maneira a completar as alegrias, o Sol resolvera preencher aquela manhã de natal. O sol. O sol!

Já era dia claro. Sua mãe não sabia de nada, deveria estar preocupada. Como Lean explicaria que havia dormido na casa de Levi? Qual seria o motivo que iria inventar? Não, pois tinha de inventar um e dos bons. Mesmo Levi sendo o seu melhor amigo, não havia nenhum motivo pra que dormisse em sua casa. Onde estava Levi, agora? Precisava de sua ajuda.