quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Capítulo 14 (Último): Ao luar, na prainha.

Estava bem. Seu nariz já não doía, não tinha mais marcas. Olhava-se no espelho e era o mesmo Lean de sempre. O menino magro de sempre com cabelos louros e olhos azuis ainda estava lá, fisicamente sim. Contudo o Lean de antes não era o mesmo de agora. Tudo o que acontecera, de alguma forma, transformara a vida do rei da selva. Ele era alguém mais forte, mais maduro, mais consciente do que o menininho que entrara naquele hospital com o nariz sangrando. Daniel não o tinha transformado de todo, não fizera dele alguém adulto, mas uma criança grande; uma criança grande e anestesiada. Alguém que, depois de furar o dedo, ou outra coisa, na roca de tecer, dorme e com a chegada de um príncipe salvador acorda. Aurora.
Estava deitado na rede na varanda de seu apartamento. Lá em baixo os carros passavam. Não. Não passavam, estavam parados. Engarrafados. Mário e ele, engarrafados. Lean desceu da rede e observou o congestionamento, que já se estendia por toda a sua rua, até a rua da praia. O garoto ficou ali, observando os carros e meditando sobre engarrafamentos.
Como se formavam? Era esquisito entender isso. Talvez um acidente, mas esse não parecia ser o motivo daquele engarrafamento – Lean estava ouvindo FM e não noticiaram nada. Podia ser um semáforo, mas era estranho como três simples luzinhas fossem capazes de parar uma rua tão grande como a sua e pelo visto a Rua da Praia e suas outras perpendiculares. Podia ficar ali, por horas imaginando os motivos de um engarrafamento, mas sabia, por já ter enfrentado vários, que cedo ou tarde, o engarrafamento cedia, jogava a toalha, estiava a bandeira branca e o fluxo do trafego de “intenso”, passava para “bom”. Era a lei natural dos engarrafamentos, todos tinham um inicio e um fim. Todos começavam com as ruas vazias e terminavam com as ruas vazias. As artérias desobstruídas, obstruídas, e desobstruídas de novo. E o coração bombeando o sangue tranqüilamente. Assim é a vida.
Seu engarrafamento com Mário, a dificuldade que estavam tendo em viver o que queriam, chegaria ao fim. E então rumariam, livremente. Voariam, a grandes asas, o vôo condoreiro. Se tinha vindo do pó, e se pra ele retornaria; se não tinha nenhuma importância e no fim de sua vida acabaria como todos os seres humanos da Terra, não tinha nenhuma necessidade de ficar em cima de um pedestal, esperando o mundo se dobrar diante de si. Quem ele era? Quem seria amanhã? Um mortal. Alguém feito pra deixar tudo que construisse para ir para outro lugar, ou para lugar nenhum. Não valia a pena ficar remoendo sentimentos, deixando de viver pra ficar guardando rancores e dissoluções.
Decidiu e discou.
“Alô.” Era a voz dele. Lean gelou. Seu coração queria parar. Sabia que retornaria ao pó, mas não tinha de ser hoje, né?
“M-Mário” Gaguejou.
“Sim, Lean. Sou eu. Como você ta?”
“To melhor e por incrível que pareça, bem melhor agora.”
“Eu também. É bom ouvir sua voz depois de tanto tempo. Me per...”
“MÁ-rio, por favor. Não. Eu liguei pra gente conversar, mas não pelo telefone. Precisamos nos ver.”
“Claro! Onde?! Quando?!”
“Sei lá, mas eu pensei em conversarmos naquela praia escondida que a gente ia quando queria encher a cara. Lá parece ser legal.”
“Tudo bem, mas quando?”
“Hoje. Às 20:00. Pode ser?”
“Claro, Le-ão.” Mário estava um pouco embaraçado.
“Como é bom ouvir você me chamando assim.”
“Melhor ainda poder te chamar.” Do outro lado Lean sorriu. “Que foi? Ficou mudo.”
“Nada. Tava sorrindo. Então ta combinado. Nos vemos lá.”
“Ta certo, leva um pouco de carinho e compreensão. Acho que eu preciso.”
“Não. Vou levar muito amor.” Lean falou rindo.
“Te amo.”
“Eu também, beijo.”
“Muitos beijos.”
Será que tudo se acertaria, agora? Será que a hora do rush daria lugar a calmaria da madrugada? Claro, né? Só o lerdo do Lean pra questionar isso depois do papinho meloso no telefone! Aff! “Obrigado, meu Deus!” Lean olhou pro céu, que começava a perder o Sol.
Lean tomou banho. Aproveitou a água que corria em seu corpo, sentia-a limpando-o, renovando-o, esse era o papel da água, num rio trazer o novo. Vestiu uma T-shirt vermelha, que já fora elogiada por Mário, e uma bermuda de brim preto. Calçou sandálias de borracha. Não penteou o cabelo. Era um leão, sua beleza estava na juba. Não na juba burguesamente penteada, mas na juba rebelde e naturalista, que lhe dava humanidade. Passou na cozinha e pegou uma colher. Uma só. Não precisavam de duas.
Mãe/ Pai (quem ler), estou indo resolver minha vida. Indo atrás do vento que me leva até ele. Não se preocupem, foi tudo um mal entendido. Eu estarei bem ao lado dele. Melhor impossível. Deus estará comigo.
Com amor,
Seu filho, Lean.
P.s.: Esqueci de marcar o dentista do papai. Foi mau!

O bilhete deixado na porta de geladeira com certeza tranqüilizaria os pais quando chegassem e não encontrassem o filho.
Numa padaria perto da praia, que iriam, Lean comprou um pote de sorvete, desses de dois litros. Ficou esperando pelo amado. Não demorou muito. Às dez para as oito, lá vinha ele, o contraventor. Montado numa moto, que pilotava muito bem, mas que não tinha autorização para dirigir. Estava vestido de verde, de novo. Bermuda de tac-tel, e chinelos de dedo também.
“Você e sua moto ilegal!” Lean sorriu olhando aqueles olhos verdes que há muito não via.
“Não quero saber de moto, não. Me abraça!” Mário sentia falta de abraçar o seu anjinho, seu leão, seu magrelinho. Queria abraçá-lo e o apertava forte, como se aquele abraço fosse a única coisa no mundo.
“Não me esmaga, Mário.” Lean tinha a voz abafada pelo abraço do amado, mas queria mais; estava mesmo era fazendo charme. Um beijo no rosto selou o acordo de paz e amor, muito amor, entre os dois.
Foram pra areia, lá se sentaram ainda distantes do mar. Lean tirou o pote de sorvete da sacola que carregava, tirou a colher do bolso lateral da bermuda e deu uma colherada no sorvete.
“A primeira não é nem minha nem sua,” disse apontando a colher cheia. “É nossa.” Dito isso, mordeu, com os lábios protegendo os dentes, metade do sorvete contido na colher e com a própria mão serviu a outra parte a Mário, que demorou longamente para tirar a colher da boca, enquanto olhava arisco para Lean.
“Leãozinho, me perdoa.” Mário olhava muito sério para Lean, que ficou calado. “Eu fui muito... malvado com você. Não respeitei você, só pensei na minha criancice. Queria fugir das responsabilidades e fugi de você. Eu tava com medo. Esperei tanto pra ouvir o que você me disse, que não tive reação se não sair correndo. Fui bobo.”
“O bobo mais lindo. Mais experto. Mais sábio.” Lean não sorria.
“E depois tudo aquilo, né? Que bom que seu nariz ta perfeito.” Mário começara a chorar. “Me perdoa por isso também?”
“Claro, amor. Por tudo. Me perdoa você, por ser idiota e não perceber as indiretas sobre o leão e a selva,” os dois riram, “por chamar você de covarde, você não é isso. É o meu herói. Me perdoa?”
Mario se aproximou mais de outro. As pontas dos dedos da mão direita alisavam os cabelos da nuca de Lean, puxou sua cabeça pra mais perto. E em seu ouvido sussurrou: “Claro que sim, meu anjo. Nunca mais vou largar você.” Olhando-o nos olhos, beijou-o.
Um bejio molhado, quente e cheio de amor. Era o primeiro, o primeiro de muitos. As lágrimas mais uma vez venceram Lean, só que dessa vez não tinha problema, deixou-as escapar, livres, desimpedidas, trânsito da madrugada. Um beijo de vida, de alegria, de tudo. Dos dois. Finalmente! Mário mordeu com os lábios o nariz, antes quebrado por ele, de Lean. E beijava-o. Lean sentia o interior daquela boca que muito estivera em seus sonhos. A lingua de Mário brincava com a de Lean, e sentia seu céu da boca e lambia seus dentes. Um beijo muito calmo. Os dois queria se sentir, aproveitar aquele momento. Lean mordeu, de leve, o lábio inferior de Mário, que sorriu e o olhou com malícia.
Lean deitou na areia. Mário deitou por cima dele, mordeu a orelha que tanto ouvira sua voz de perto, beijou-o no rosto.
“Lean, eu quero você pra mim.” Falou com sua voz calma e doce, como Lean não conhecia ainda, e mordiscava o pescoço do amado.
“Eu quero ser seu, Mário.” Lean não tinha fôlego suficiente.
“Todinho, todinho?” Mário perguntou mordendo o queixo de Lean.
“Todinho e pra sempre.” Lean sorriu perdendo sua mão no negro dos cabelos de Mário.
A areia era o palco, o mar a trilha sonora, a lua o holofote, as estrelas a platéia e o espetáculo eram os dois, mergulhados no mais profundo e real sentido da palavra amor. Um queria o outro mais do que a tudo. Podiam estar num anfiteatro natural, mas não estavam representando. Era vida real. Era amor. Era Lean. Era Mário. Era tudo.
Os olhos verdes e os azuis misturados num só. A pele alva e a morena. Os cabelos louros e pretos. Misturados num só amor. Numa só carne. Numa só alma. Num só infinito.
Os beijos mais apaixonados, mais intensos, mais puros, mais belos que a lua já presenciara, estavam sendo trocados ali, entre os dois. Lean. Mário. Leão. Selva.
“Você é o meu reizinho.” Mario disse entres os dentes enquanto sorria.
“Naum. Você que é o meu.” Lean balançava, negativamente, a cabeça.
“Nem vem! Arruma outra coisa. Quem inventou essa história de rei fui eu. Arruma outra coisa pra me chamar.”
“Então ta. Você? Você é... meu Sol. Mario-Sol. Ilumina minha vida e aquece o meu coração. E mesmo que nuvens me impeçam de ver você, eu sei que por trás delas você brilha. E o Sol, meu amor,” Lean debochava “nada mais é, que o Astro... Rei.” Lean sorriu e mordeu o lábio inferior arisco, zombando de Mário, pois tinha conseguido chama-lo de rei de um jeito ou de outro.
As bocas queriam mais do que simplesmente uma à outra. Queriam o rosto todo; os narizes, as bochechas, os queixos, os olhos, as orelhas, as estrelas. As mãos perdidas pelos cabelos e o aguçado olfato sentia o perfume que emanava daquela união sagrada. Mário correu, na mala de sua moto havia um cobertor – crime premeditado? Pode crer!

Éramos em fim,
Um do outro.
O leão e sua selva,
A selva e seu leão.
O amor ardia em nossos
Corações e almas.
Éramos nós dois
Em um só.
Uma só carne.
Em unidade de espírito.
Nada mais era importante.
A vida poderia ser vivida assim,
Pra sempre.
Não estaríamos perdendo nada.
Só do que o mundo precisava era
Do leão e de sua selva,
Da selva e de seu leão.

Os dois permaneceram abraçados e deitados na areia. A lua banhava-os e era testemunha desse amor, dessa união. Consumada ali, naquela areia, naquele luar. Do alto de seu sublime trono, Deus buscava na terra, com seus bondosos olhos, união tão linda quanto aquela, e pela primeira vez reconheceu que não era capaz de fazer algo. Encontrar em outro casal, de qualquer natureza, tamanho amor, tamanha beleza, era uma missão que o Onipotente não podia cumprir.
“Vamos embora cometendo um crime?” Lean perguntou sorridente quando estavam na calçada. Eram quase quatro da manhã.
“Se é isso que quer saber, sim, vamos de moto. E você vai com a mão aqui.” Falou apontando para a cintura.
“Claro. Não agüentava mais andar na sua moto segurando naquele treco idiota.” Mário riu da ignorância do seu amado para assuntos automobilísticos. Lean batia os dentes por causa do frio.
“Toma, veste.” Mário ofereceu sua jaqueta a Lean.
“Não. E você, vai ficar com frio?” Lean estava vivendo um conto de fadas, pensava.
“Vou, mas eu sou cavalheiro.” E riu.
“Idiota! Me dá isso.” Lean vestiu o casaco rindo.
Como esses dois são piegas! Sorvete, apelidinhos, jaqueta, ai. Um pé no saco de tão meloso. Mas acontece que não posso me furtar a contar os mínimos detalhes do casalsinho, né? Tão bonitinhos...
Mário sentou na moto e Lean o imitou, segurando em sua cintura, deitou a cabeça nas suas costas.
“Só tenho um capacete. Usa você.” Mário disse.
“Não! Ta tudo muito lindo entre nós e não vamos abrir espaço pro Mal destruir isso. O menino que morreu no Rio, o João, tinha marcado seu primeiro gol, em toda a sua vida. E estava feliz por isso. Mas o Mal se incomoda com a felicidade, e conspira para que ela acabe. Não quero dar esse prazer. Eu vou a pé e você vai de moto, devagar, do meu lado, usando capacete.” Lean desceu da moto.
“Ta falando sério, Leão? Cara, volta. Eu vou devagar e ta de madrugada, não tem ninguém na rua.”
“Não. Chega de discutir isso. Eu não quero te perder, e não quero deixar você sozinho. Não, agora, que tudo se acertou com a gente. Anda, liga e vamos. Sete quadras, e eu chego a casa.” Lean permaneceu na calçada enquanto Mário ia, lentamente, de moto.
Quando chegaram ao prédio de Lean, se beijaram. Um beijo de amor, como todos os outros. O leão sentia imenso prazer de ter em si a boca de sua selva, era intimo demais, beijá-la. Suave. Lindo. Os dois beijavam ora de olho fechado, ora aberto, se olhando, se encarando. Mostrando, com os olhos, como era bom estar ali.
Lean devolveu a jaqueta a Mário, que a recebeu de bom grado.
“Amor, vai com Deus.” Lean sorriu.
“Eu vou. Fica com Ele.”
“Eu fico.”
Um último beijo, selou a despedida.
Lean entrou no prédio aos saltos. Estaria ele numa cena do cinema clássico? Ou estaria sonhando? Não. Isso não podia. Não podia estar sonhando. Tinha de ser tudo a mais pura realidade. E era.
O leão deitou-se em sua cama, olhou para o teto, não queria dormir. Queria mesmo era sonhar acordado. Dali pra frente, pertencia a Mário, de maneira instituída.

Me deixaram entrar.
Eu estava vendado
Pelo caminho.
E juro que se o soubesse faria um mapa.
São poucos os que chegam à praia.
E para os que não chegam
Consiste numa simples e fantástica lenda urbana.
Aqui sou feliz.
Aqui somos felizes, ele veio comigo.
Não teria graça sem ele.
Nos demos forças para transpassarmos o caminho.
Aqui o vento não me pega.
Aqui habito os rochedos,
Não fiz casa na areia.
Não envelheço, não trabalho, nem luto.
Apenas o amo.
Eu tenho seus olhos, ele tem os meus.
Que mais podemos querer?
Eu tenho ele, ele me tem.
VER AETERNUM ERAT.

Muitos são chamados à felicidade, mas poucos se permitem escolher. Alguns não saem do casco, outros voltam correndo, outros desistem e deixam casco e tudo. Mas há aqueles, que não temem, contam, dizem, abrem o jogo. Vão á luta. Às ruas reclamar seu direito. E são, enfim, felizes. Sortudos?! Talvez. E nós, que ficamos de fora, olhamos lacrimejantes, esses seres eleitos sendo levados para o paraíso. A vida tem disso, vez ou outra, alguém se dá muito bem. Daí, passamos a contar suas histórias, até que virem lenda.
1-Do latim: A primavera era eterna.

Capítulo 13: Você não é bem vindo aqui

O vento do norte bate impiedoso
Queimando as narinas,
Congelando os pulmões.
Cortando a alma,
Machucando o coração.
Desarrumando tudo, fazendo arruaça.
E eu, um móbile solto
À sua mercê.
Queria eu, ser um hiperbóreo.
Livre, distante, feliz.
Isento deste vento que destrói.
Queria viver com eles.
Mas não! Habito o litoral.
Palafita é onde moro.
A mim, chegam por terra, céu e mar.
Em mim, parece o inverno ser eterno.
Primavera? Palavra nova.
Vou consultar o dicionário!

Meu Deus, quanto sangue! Tinha levado uma boa porrada. E de quem, era melhor não comentar. Era triste demais pensar nisso. Pensar nas ofensas, nos olhares de raiva, nas caras fechadas, as testas franzidas, os dentes cerrados, o ódio estampado no suor dos rostos e o soco e o sangue. Doía mais, mais do que o próprio nariz contundido. Doía na alma, no espírito. A vida parecia esvair-se junto com o sangue, que escorria pelas narinas, indo embora, sem se poder apará-la; vazava pelo ladrão.
Lean não podia suportar a lembrança do rosto de seu amado no instante do soco. Como alguém poderia ter, dentro de si, tanto ódio? E Lean sabia bem que era possível, o que ele não queria era admitir que já tivera seu coração corroído pelo ódio uma vez. E sua mente, maldosa, lembrando do que não deve, levou-lhe à varanda de sua antiga casa onde repugnava o pedido de perdão de Levi.
Mas será que Mário estava sentindo por ele o mesmo que um dia ele sentira por Levi? Não, não podia. Mário não tinha o direito de odiá-lo como ele odiara Levi. Tinha sim! Se ele fazia com alguém, qualquer um tinha o direito de fazer com ele. Era bom, pensava Lean, dizer aquelas coisas pra Levi, e odiá-lo daquela maneira, mas sofrer os frutos de tal sentimento não era tão bom assim. Doía demais.
Mas nem mesmo todo esse mergulho em seus sentimentos e a conscientização de que não agira de maneira correta com Levi, que pediu perdão e merecia ser perdoado(merecia?), fez com que Lean esquecesse o que o amor de sua vida lhe fizera. Sabia, agora, que não deveria guardar rancores, mas, assim, tão recentemente, era difícil esquecer. Talvez, chegará um dia em que pense melhor assim como pensara o caso de Levi, e notará que é melhor esquecer tudo. Mas não agora. Doía muito. Não o nariz quebrado, sim isso doía. Mas as dores moral e sentimental eram ainda maiores. E pra essas não tinha nenhum médico; pelo menos nenhum que atendesse num consultório ou numa Emergência. Só o tempo curaria e em muitos casos nem mesmo o tempo. Esse, que cura todas as coisas, às vezes é falho.
Lean pensava muito em ódio. Ódio e ódio e ódio. Mas não era possível odiar Mário. Tinha lá um aborrecimento, tristeza e vá lá uma raiva aqui e outra ali. Contudo não era possível mau querê-lo. Estava triste, ferido. Porém ainda o amava. Ainda sentia em suas veias o amor correr feito sangue, que mesmo tendo sido perdido aos litros, ainda havia o suficiente pra manter as funções vitais. E o que diferenciava o amor que Lean sentia por Mário de seu sangue, era que com o soco, muito sangue tinha se perdido; e amor, mesmo com toda a briga, permanecia intacto, ileso, imaculado.
Lembrava dos momentos juntos na quadra da escola, jogando basquete; o rosto de Mário era lindo enquanto suado. Lembrava de Mário abanando-se no calor com a camisa vestida no corpo, enquanto deixava à mostra a barriga, um pouco fora de forma e linda. O sorriso. Mário ria com os olhos; a forma como ele comemorava uma sexta marcada, sempre corria e abraçava Lean, que fazia o mesmo quando marcava uma. E como eram os melhores, se abraçavam quase o treino todo.
Lembrou-se de como era lindo em todos os momentos. Sua voz, linda, cantando “Close to you”; bêbado pedindo para que Lean não o abandonasse. Chamando-o de “Leão” e falando que seu coração era uma sel... Como assim?!
A ficha de Lean, finalmente, caíra. Eu tinha até vontade de me tornar um personagem do livro e contar pra esse tonto, mas resolvi dar tempo ao tempo e continuar fazendo o que fui chamado pra fazer, contar essa história. E por falar nisso...
Mário o chamava de leão, dizia que seu coração era selvagem e no dia do porre disse que já havia alguém pra governar sua selva. “Meu Deus como pude ser tão tosco?! Quem reina na droga da selva é o leão. Mário me ama!”
Ai, ai, até que enfim!
Como poderia deixar de amar alguém tão maravilhoso quanto Mário? Isso era impossível. Toda a dor da alma, do espírito, da ética, do nariz, da gengiva e até do fura bolo tinha ido embora. Acabara. Só queria olhar nos olhos de Mário e, e... Dane-se o “e”. Queria era vê-lo. Depois era depois. Estava pronto para abraça-lo e dizer-lhe que lhe amava, queria pular em seu colo e lhe encher de beijos.
Na hora das discussões são faladas coisas que nem sempre, os discutandos querem dizer. Dizem, pra sempre ficar por cima na situação, depois se arrependem. Pensam melhor e notam o quão imbecis foram falando aquelas coisas.. E Mário era só mais uma vítima das circunstâncias. Lean o chamara de covarde. Como Mário, que amava Lean, poderia suportar ouvi-lo chamando-o de covarde? Talvez Estevão não suportaria tanto. Mas não estava falando de fé e sim de amor. Puro e simples. Mário não queria fazer aquilo era tudo fruto da raiva, das mágoas, das palavras lançadas como adagas na face. Tadinho do seu amor. Deveria estar sofrendo com tudo isso. Sem noticias do seu leãozinho.
Não estou sentado à direita de ninguém.
Não fiz nada pra merecer esta posição.
Não fui cuspido ou traspassado.
Não me condenaram à morte maldita.
Não tomei chaves das mãos de ninguém.
Não tenho lugar em tal acento.
Não tenho Glória para sempre, amém.
Não tenho voz, então calo.

* * *
O que tinha feito? Essa era a pergunta que corroera a mente e o coração de Mário durante todo aquele dia. Como conseguira? Era Lean. O “Leãozinho”. Idiota! Não podia tê-lo machucado.
Lean tinha razão. Era um covarde! Primeiro fugiu quando ouviu o que mais quis ouvir em toda a sua vida, e agora isso. Como poderia olhar-se no espelho depois de tal atrocidade. Machucara a pessoa que mais importava pra ele. Agora seu amor devia estar chorando, com medo dele. Tinha medo de que o que fizera não tivesse perdão pra Lean. Tinha medo de tentar falar com Lean e o garoto o ignorar.
Se não tivesse sido tão covarde, tão canalha, nada disso estaria acontecendo. Se tivesse ficado naquele dia, em que Lean declarou seus sentimentos, agora, talvez, estariam assistindo a um filme, abraçados no sofá, comendo chocolate. Essa imagem utópica da relação caótica dos dois fazia o estômago de Mário revirar-se. Mas era tudo culpa sua. Um grande idiota! Se não tivesse feito tantas burradas, nada disso estaria acontecendo.
Como estaria Lean? Bem? Mal? Morrendo? Não, morrendo não! Jamais se perdoaria se o outro morresse. O amor de sua vida assassinado por ele. A idéia o fazia tremer.
Mário viu as horas passando pelo celular, minuto por minuto; hora por hora. Seu lençol encharcado de suor e todo franzido do tanto que se virava e revirava na cama. O desespero era grande. Queria fazer alguma coisa, tinha de fazer algo. Mas o quê?
Fechou os olhos e tentou sonhar acordado. Imaginou seu encontro com Lean. Uma loja de roupas era o cenário para a ilusão. Lá os dois se encontravam casualmente e Mário ajoelhava-se diante de Lean e lhe pedia perdão publicamente, pedia que o amasse de novo. Lean respondia que sim, então Mário se levantava e beijava-lhe a boca efusivamente. Os dois não se importavam com a multidão que se aglomerara em volta deles. Naquele sonho só o que importava eram os dois.
Ainda de olhos fechados, Mário viajava pelo mundo de Lean, tentando lembrar do sorriso do amado quando o via, ou quando acrescentava mais um “dez” à sua coleção de notas pra pregar na porta da geladeira de casa. O olhar sonhador de Lean quando descrevia os livros de Jane Austen. A dancinha idiota que ele fazia quando estava muito feliz com alguma coisa. O movimento do vento em seus cabelos. A beleza de seu olhar indagador, a graça de seus olhares de zoeira e de ironia. Lembrava das vezes em que ouviu Lean declamando um poema. De como ficava lindo quando falava inglês, de como pronunciava o “th” em palavras como “through”; mais lindo ainda falando espanhol, onde sua voz parecia de criança. Mas nada era comparado a Lean falando francês, isso lhe dava um charme e elegância, sem iguais. Sua cara de bobo quando alguém lhe fazia uma surpresa.
Dava saudade dos jogos de basquete, das comemorações calorosas das sextas marcadas pelos dois. Da nuca suada e dos cabelos louros suados e grudados na nuca. Da face avermelhada que ele adquiria depois de jogar no sol. Nada melhor do que vê-lo na aula seguinte a de educação física, na carteira à frente. Com o rosto vermelho, com o suor seco e poeira, juntos. Isso conferia a Lean um pouco de humanidade e beleza extraordinárias.
Sentia saudade de inclinar-se para a frente e sussurrar idiotice no ouvido dele, falava qualquer coisa, só queira falar no “ouvidinho” dele. Lean era lindo de qualquer jeito, até mesmo imitando os professores mais bizarros que tinham.
Queria ter em seus braços o seu magrelinho, seu pedacinho de gente, o seu leão. O rei do seu coração. Mário abraçava o travesseiro e beijava-o, chamando-o de Lean e imaginando um momento de amor dos dois. Mas era só sonho, só ilusão. Tudo estava muito, muito longe de virar realidade. Ou ele assim pensava. Estava imaginando Lean correndo e quicando a bola avermelhada de basquete na quadra da escola, e marcando uma sexta de três pontos, correndo para os seus braços para juntos comemorarem.
Mário não queria abrir os olhos, queria ver se pensar no seu anjo o faria dormir tranqüilo, mas alguém em algum lugar do mundo, parecia não querer deixa-lo sonhar. Queria trazê-lo à dura realidade. Seu celular. Não tinha jeito, tinha de atender. Levantou-se e pegou o aparelho na escrivaninha. Não era ninguém, era o despertador anunciando a hora de “acordar” para a escola. Mas não precisava acordar, não tinha dormido. E não iria à escola estava cumprindo suspensão.
Eram seis da manhã. Levantou-se da cama. Seus olhos ardiam. Não dormira nem cochilara. Estava em claro, virado. Tinha tomado uma decisão: resolveria tudo aquilo. Iria ao hospital onde Lean estava.
Tomou banho, fez a barba. Jogou no corpo uma camisa pólo verde, sabia o quanto Lean gostava da cor. Pólo, porque Lean tinha dito uma vez que o modelo caia bem em Mário. Uma bermuda jeans e um tênis comum. Era agora ou nunca. Olharia nos olhos do amado e lhe imploraria por perdão, se necessário. Que se danasse o orgulho próprio. Que se danassem todas as coisas. Era o amor de sua vida que estava em jogo. Não era tempo de ter um coração soberbo, não era tempo de se preocupar com futilidades como vergonha na cara. Diante do que estava em foco, isso tudo era grande balela, grande idiotice. Enfiaria a si mesmo entre as pernas e correria atrás de seu amor.
Mário andou até a parada do ônibus viajou no ônibus desceu do ônibus atravessou a rua dobrou uma esquina para a direita dobrou outra para a esquerda. Entrou no hospital ensaiando como diria o que viera dizer. Não queria parecer pretensioso ou autoritário. Queria que suas palavras fossem polidas e comedidas para que o outro não pensasse que estava ali “botando banca”.
A recepcionista do hospital fora muito simpática com Mário. E logo o garoto estava andando em direção ao elevador que o levaria ao andar onde seu leãozinho estava e lá falaria tudo. Diria o quanto o amava e pediria perdão por tudo. Ele estava andando pelo corredor, quando uma voz feminina chamou sua atenção:
“O que você está fazendo aqui?” Era a mãe de Lean.
Mário percebera o quanto ela estava sendo ríspida, também não era pra menos. Ela estava falando com o agressor de seu filho.
“Eu... eu vim ver o ...” Gaguejou Mário.
“Veio ver o meu filho? Veio ver o tamanho estrago que o seu espírito de medievalismo causou a ele?” Os lábios de Flávia estavam brancos.
“Não, senhora. Eu não...”
“Olha, menino, eu não sei o que deu no meu filho pra se apaixonar por alguém como você. Eu pensava que você fosse um bom menino, mas me enganei. Você sempre foi à nossa casa, e agora isto? Agressão?” Ela gesticulava, fazia caras e bocas e jogava os cabelos louros, exatamente como o filho fazia de vez em quando.
“Me desculpe. Eu errei, eu...”
“Errou. Sim e muito. Bateu no meu filho.” Ela levou a mão ao peito. Mário entendeu que Lean não devia ser chamado de leão só pelo trocadilho do nome, mas também por ser filho de uma autêntica leoa.“Eu mesma não faço isso! Você não tinha o direito. Só por que ele te ama. Tudo bem que não seja a sua praia, ou sei lá o quê, mas não precisava tê-lo machucado. Meu filho é um lerdo. Não sabe brigar. E o que você fez foi uma covardia.” De novo a tal da covardia, parecia ter sido grudada à personalidade de Mário nos últimos tempos.
“A senhora tem razão, sou um covarde. Mas isso eu já sei. Não preciso que me digam. A senhora vai deixar eu ver o seu filho e conversar com ele o que eu tenho pra falar com ele?” Mário estava se cansando. Não queria ficar muito tempo perto da mãe de Lean. Sabia que ela estava de cabeça quente e machucada pelo acontecido com o filho e não queria perder a paciência com ela pra não falar coisas que se arrependeria no futuro. Afinal de contas, se tudo desse certo, ela seria sua sogra o quanto antes possível.
“Não. Você não verá o meu filho. Tenho medo do que você pode fazer a ele. Como você disse, é um covarde. E pode querer maltrata-lo mais.” Ela sabia ferir as pessoas. Era boa nisso. E doía muito. Ouvir aquelas coisas era doloroso. Mas era tudo fruto de seus atos.
“Então, se a senhora me der licença, eu vou embora.” “Sim. Dou toda a licença do mundo! Você não é bem vindo aqui! Você não é bem vindo na vida do meu filho. Vá embora!” As ásperas palavras da mulher acompanharam Mário por todo o caminho de volta até a casa.

Capítulo 12: O abismo


Sou o lado leste.
Sou o lado oeste.
Estamos distante.
Isso me mata.
Há um abismo.
Não há ponte.
Há o vazio.
Há o nada.
Já fomos tudo.
Há o nada.
Éramos um.
Éramos tudo.
Há o nada.
Fomos amigos.
Não há ponte.
Há um abismo.
Há um luto.
Há um vazio.
Há o nada.
Sou o lado leste.
Sou o lado oeste.
Já não somos nada.
Sim somos nada.
E já fomos tudo.

Ninguém entendia nada, ninguém era capaz de entender. Ninguém imaginava nada, ninguém nunca imaginaria. Os dois, os melhores, os companheiros, os cúmplices, os irmãos.
Lean decidiu que não deveria mais se esconder, ele precisava ir a escola, fazer coisas, viver. Não tinha cabimento ficar trancado dentro de casa com um mundo inteiro girando, lá fora. Ele fazia parte dessa locomotiva gigante, que bem ou mal precisava dele pra se mover, afinal era uma das peças.
O coração disparou. O carro do pai parara em frente à escola, e Lean sabia que em minutos estaria... Não saiu do carro. Ficou pedindo aos céus por uma ajuda, que um raio destruísse a escola, para que não tivesse de entrar lá e enfrentar seus medos.
“Filho, você precisa ser forte. Não pode deixar que isso tudo estrague e estagne sua vida. Levante e vá.” Fernando tentava incentivar o filho.
“Eu vou, pai. E fique tranqüilo vai dar tudo certo.” Lean sorriu para o pai e lhe deu um beijo de despedida.
Cada passo dado eram mil batidas no coração, que talvez não fosse agüentar, talvez fosse apelar pra um ataque, um “abc” como já se ouviu dizer. Lean não conseguia andar direito, pernas de bambu foram trocadas pelas suas originais. As habituais escadas da escola foram um obstáculo a mais, mais um, no meio de tantos que enfrentaria naquele dia.
Quando o garoto entrou na sala ficou contente em notar que Mário não estava lá, talvez tivesse evadido pra sempre aquele lugar. Isso seria bom. Não! Nunca! Teria de vê-lo de novo. Teria de olhá-lo de novo. Morreria. Morria só de pensar. Sentou-se no habitual lugar. Nenhum colega perguntou o motivo da uma semana de ausência, sua mãe fizera o favor de ligar pra escola e mencionar uma virose; apenas perguntaram se estava tudo bem. O único que, de fato, sabia o real motivo da longa ausência de Lean era Mário. Bom, isso se o garoto não tivesse contado a ninguém o acontecido no pátio há dez dias.
O horário de tolerância explodiu: sete e quinze. Nada de Mário. E isso contentava e entristecia Lean. Queria adiar o encontro, mas queira vê-lo.
A sirene que anunciava o término da primeira aula soara. E Lean lembrou. Os portões tornam a abrir no segundo horário. Será que... Sim. Os olhos verdes acompanhavam os corredores de acesso à sala 307. Batidas na porta afastaram Lean de seu transe momentâneo. A porta da sala abriu e revelou os olhos mais lindos do mundo, os de Mário.
O garoto fez uma busca rápida pela sala com olhos, como quem procura lugar vago num dia de atraso, mas não era um lugar vago o que ele procurava, eram os olhos azuis de Lean, que ele queria encontrar naquela segunda feira. Um sorriso muito, muito, mas muito tímido mesmo e quase imperceptível se formou e rapidamente se desfez no rosto do moreno no instante em que seus olhos deitaram sobre o loiro. Lean também percebeu o quase não sorriso, e isso iluminou seu dia. Parecia um dia muito normal, a não ser pelo atraso de Mário, pois este sentou-se, como se nada estivesse acontecendo, no mesmo lugar de costume, numa carteira atrás de Lean.
Falou-se de química, história e inglês naquele dia. Mas Lean não anotou nada, não ouviu nada, não viu nada. Seu pensamento era um, apenas um, Mário, que estava tão perto, a meio giro de corpo, e tão distante, a um abismo de alma.
“Lean.” Era voz de Mário o chamando, mas Lean estava com medo, com medo do que viria. A começar pelo fato de não ouvir o habitual “Leão” como tinha se acostumado a ouvir o outro chamar. Lean correu, não olhou pra trás. Felizmente seu ônibus apareceu, fez sinal, entrou e sumiu. Mário ficou lá, com cara de taxo, mas entendeu que tudo aquilo era culpa sua.
Lean estava conseguindo prestar atenção às aulas e era isso que estava fazendo, quando Mário se inclinou de sua carteira e aproximou sua boca do ouvido do outro. Lean pôde ouvir a respiração do seu amor.
“Fugiu de mim ontem? Por quê?”
Lean não olhou pra trás, ao invés disso, mirou sem ver a professora de Geometria, pensando no outro, na carteira de trás; retas paralelas e perpendiculares não faziam sentido nenhum. Depois disso pegou a caneta e continuou copiando de onde parara e reparou que havia borrado o caderno, no instante em que ouvira a voz de Mário.
“Qual é, Lean. Vai me ignorar?”
A isso não era possível continuar passivo, precisava de réplica. Olhou pra trás. Encarou aqueles olhos verdes que tanto amava.
“Eu tenho uma dúvida: isso foi uma ironia do destino, ou um deboche seu?” Lean estava com a cara quente. Virou de volta sem dar direito de resposta ao oponente.
“Lean, pára com...”
“Professora, posso ir ao banheiro?” Lean abafou a voz do outro. A Professora respondeu que sim.
Mário esperou que a professora ficasse de costas e fugiu da sala.
“Pára de me seguir!” Disse Lean assim que Mário o alcançou, mas disse de maneira que só ele ouviria.
“Pára você de fugir de mim!”
“Você é o quê? Piadista de circo?! Comediante? Hein. Primeiro me diz pra eu não te ignorar, depois pra eu não fugir de você. Isso é o quê? Não gosta que eu faça com você o que você fez comigo? É isso?”
“Ah, entendi tudo. É uma vingancinha besta de adolescente! Ele fez comigo eu vou fazer também.” Mario fez uma voz fina e forçada, debochando do outro.
“Não basta? Tudo o que você fez comigo? Quer mais? Quer pisar mais em mim? Pisa. Destrói esse pano de chão.” O pátio da escola era o cenário e o palco do duelo verbal. A escola toda assistia ao bate boca, mas não chegaram a ouvir a última frase de Lean.
“Não se trata disso, seu idiota. Você é quem está dificultando tudo com esse seu joguinho besta e infantil.”
“Infantil?! Infantil é você, que não sabe enfrentar seus problemas de frente. Foge deles. Foge feito um rato. Um covarde.” A palavra “covarde” saindo dos dentes cerrados de Lean foi o suficiente para que Mário avançasse no outro como um animal.
Com ódio no olhar, Mário levou seu braço direito pra trás e o trouxe de volta com toda a força no rosto de Lean. Seu punho fechado acertou em cheio o nariz dele e o quebrou. César caiu no chão e Brutus já estava indo bater mais nele, mas o sangue, vermelho, o fizera parar. Cor da bandeira que ligava um ao outro. Vermelho de paixão ou de pátria. Ferira seu amado. Como? Por quê? Sentia-se uma fera, um monstro.
Lean ficou caído, com o nariz doendo muito e sangrando também. Dessa vez não sentia só o cheiro da terra do pátio da escola, mas o gosto que tinha, e era gosto de vergonha, de humilhação, de raiva, de decepção. Nunca esperara isso.
Mário se deixou cair no chão ao lado do seu amor. Como amantes que dividiam o mesmo leito, os dois dividiam a arena.
Lean fora levado para um hospital e Mário para a coordenação. Agora sim, todos entendiam, em parte, o porquê da distância entre os dois, mas faltava um motivo maior para tudo aquilo, os inseparáveis não podiam ter se separado. Não podiam estar um socando o outro no meio do pátio. Eram muito próximos. Muito íntimos. Muito amigos. Algo grave havia acontecido.