terça-feira, 7 de julho de 2009

Capítulo 11 - "Lá e de volta outra vez"

Tinha raiva. De si e do mundo. Principalmente dele. Dele não, dele era impossível ter raiva. Em lugar desta ficara a mágoa. Uma ferida fixa em seu coração. Demorara tanto. Esperara tanto. Por isso. Por essa porcaria. Por todo o desprezo. Não, ele merecia valor. Ele era Lean, não qualquer coisa. Não um lixo, nem um tapete. Como se ser "Lean" representasse muita coisa nos dias de hoje! Mas vá lá, ele precisava de auto valorização!

Não conseguia ver-se direito no espelho. Sua visão estava embaçada em virtude das lágrimas que enchiam seus olhos. Chamava-se de burro. Idiota. Besta! Babaca! Imbecil! Era tudo isso. Um monte de nada. Um saco de bosta! Doía muito. Muito mesmo. Alguém cravara uma faca em seu peito e segurando o cabo dela movimentava-a para aumentar a dor. Idiota! Imbecil! Burro! Babaca! Bosta!

Sozinho naquele pátio. Sentindo o cheiro de terra, ao invés do maravilhoso cheiro dele, que talvez nunca mais voltaria a sentir. Uma vez que tinha dito tudo o que guardou por quase três anos, estaria cada vez mais longe do amigo, não mais perto a ponto de sentir seu cheiro, seu hálito, o odor de suor e camisa no fim da aula de Educação Física, o cheiro do cabelo dele. Seu sorriso, de "vai ficar tudo bem", seu olhar de compreensão, seu olhar de carinho, seu olhar de tudo. Pra tudo ele tinha um olhar e Lean os entendia e decifrava e era capaz de descrevê-los -mas no momento em que mais precisara decodificar aqueles olhos verdes, fugira deles. A voz firme que aquela boca linda produzia. Queria-a. A pele que o Sol visitava, os cabelos que os ventos faziam dançar. As mãos, a parte dele, que Lean mais sentiu. Em apertos inocentes Lean a sentia e sentia vontade de beijá-la. Tudo isso estava perdido.

Não seria melhor não ter contado? Ter ficado e guardado pra sempre o que sentia? Se o tivesse feito não sofreria, agora. Teria tudo como antes. O teria como amigo, não era com isso que sonhara, mas era melhor do que nada. A megera da sua avó dizia: "Mas vale um na mão, do que dois voando". E ela tinha razão, a velhaca. Era melhor ter o seu amigo – e essa palavra fazia doer – do que não ter nada. Era melhor estar perto e calar-se, humilhando-se, mantendo-se calado só pra estar junto, só pra vê-lo de perto, só pra senti-lo, só pra ser amigo, só pra ser dele. Assim, quietinho, em silêncio, Lean foi dele. E poderia, sim, viver o quanto fosse possível, ao lado dele, e em silêncio. Esquecera do orgulho; era capaz de se submeter ao silêncio para não perdê-lo. Mas era tarde, até pra isso.

Era sexta-feira. Lean estava deitado em sua cama, com os olhos inchados e a cara vermelha. E depois deste desterro, um toc-toc na porta. Era ele. Mostrou-se Daniel, o sacerdote que iniciara Lean, que o batizara. Como estava bonito, agora com dezenove anos.

Daniel entrou no quarto e fechou a porta, à chave. Sorriu para o primo, ali deitado e notou seu estado.

"Por que chora? Emoção por me ver?" Daniel, falou com o mesmo tom de sempre. De superioridade. De virilidade. De sarcasmo.

"Não estou chorando. Acabei de acordar. Como você ta?" Lean tentou mudar o rumo da conversa.

"Vou bem. E você aqui no Rio, o que anda aprontando, hein?" Daniel sentou-se na cama, ao lado do outro.

"Nada. Não apronto nada. E você, continua desinocentando menininhos?"

"Meninos e meninas. Mas não são crianças. Não se preocupe. São bem velinhos, já. E sabem o que querem."

"Então você só dá mais um empurrãozinho..."

"Sabe como é, né, primo? Você sabe bem como funciona." E riu. "Não vai dar um abraço no seu primo? Faz muito tempo que a gente não se vê, sabia?"

Lean sentou-se na cama e abraçou o primo. Aquele abraço tinha um gosto bom. Era bom abraçá-lo, o seu primeiro. Daniel o conhecia bem. E por mais que fosse um traste, era ele. Era Daniel e não qualquer um. Ele sabia ser carinhoso com suas presas. O viril beijou o menino venusiano no rosto, um beijo demorado. Sabia que algo chateava seu primo. Fez-lhe carinho na bochecha. Lean sentia-se bem, ali, com Daniel, que o deitou na cama de novo e deitou-se ao seu lado.
"Primo, o que você tem? Quem te fez mal?" Daniel alisava os cabelos louros do primo e beijava sua testa. Ali, por incrível que pareça, Lean sentia-se seguro.

"Nada. Só problemas meus. Internos. Manutenção mesmo." Mentiu.

"Se tiver algum prevalecido fazendo mau a você, meu priminho, me fala. Eu arrebento a cara dele. Sabe o que eu fiz com o idiotinha do Levi, né? Ninguém mexe com você, viu?" E abraçou o primo, como muitas vezes tinha feito. Muitas.

Lean sentia-se bem. Era bom estar ali, outra vez, de novo. Esquecera-se de como era bom estar nos braços de Daniel. Sentir-se dele. Percebeu que era seu porto seguro. Estar ali com o rosto afundado no peito do primo. Lean o abraçava e esquecia de tudo. Tudo não. Um certo Mário rondava sua mente, passeando com seu sorriso e olhos de selva. Marcando seu caminho com migalhas de pão. Numa terra em que pássaros eram estritamente carnívoros.

Os dois saíram. Daniel queria conhecer o Rio. E Lean, como bom carioca que se tornara, mostrava a maravilhosa cidade para o sul-rio-grandense. Lean tinha se esquecido de como Daniel era uma pessoa agradável, se acostumou a lembrar do primo como um coiote fronteiriço somente, mas ele era mais do que isso, era legal.

À noite, na hora de dormir, não dormiram.
Procurando em outros braços, teus abraços,
Me entreguei ao que chamam de anestésico.
Sim, a minha dor pude adiar.
Mas a ferida não foi fechada.
Anestesia alivia, não cura.
Morfina, para mim, foi meu primo, naquele dia.

Lean, abriu os olhos, de manhã, e achou estranho não ter seu primo do seu lado na cama. Olhou pro lado e viu que Daniel estava deitado na cama de puxar ao lado da sua e também estava acordado.

"Pensou que eu tinha ido embora, primo?" Falou sorrindo, como sempre. "Não tão fácil, só vim pra cá pros seus pais não virem a gente. Eles não sabem de nada, né?"

"Não. Não contei pra eles. Nunca falei nada. Eles devem imaginar que eu não seja mais virgem, mas não desconfiam de você comigo. Eles já saíram. Volta pra cá." Lean puxou o braço do primo.

Queria se afogar em Daniel. Era bom. Escapar da vida, da dor, de Mário. A única coisa impossível era escapar de Mário. Daniel foi, ficou com o outro e o abraçou.

"Vim em boa hora, né Lean?" Daniel olhava nos olhos de Lean.

"Como assim?" Fez-se desentendido.

"Eu acho que você não ta bem." E estava certo.

"Amor não correspondido." Lean contou a Daniel o ocorrido.

Era ruim, muito ruim contar aquilo. Aquela derrota.

"Ele é um idiota, Lean", sentenciou Daniel. "Não vale a pena, primo."

Ouvir aquelas coisas era pior do que falar mil vezes o acontecido. Lean não gostou de ouvir Daniel chamando Mário de idiota. E valia sim, valia a pena, ainda. Não queria acreditar que teria um fim. Na verdade não teria um fim, não tivera um começo, como pode haver um fim?

Capítulo 10 - Biblioteca, o asilo

Refugiados entre as estantes de livros empoeirados, velhos e mofados, estavam os assustados, arregalados e lacrimejantes olhos de Mário. Ele estava nervoso, seu coração brincava de carnaval, e a quarta feira parecia não querer chegar. Como aquilo tudo era possível? Por quê? Era Lean quem estava lá. Era ele. Mário não entendia porque tinha feito aquilo se tudo o que ouviu era...Teria sido medo? Idiotice, bobeira? O que o fez sair de lá, deixando o seu amigo? Como estaria Lean, agora?

Não reagiu bem. Deveria ter ficado, ouvido o que o outro tinha pra dizer. Ouvir tudo. Mas a covardia tomou conta dele. Ao seu lado estavam Dorothy, o cachorro, o homem de lata e o espantalho, juntos faziam uma equipe perfeita, peregrinando pelos tijolos de ouro.

Andou pela biblioteca sentindo-se um saco de esterco, um parasita, alguém que não foi. O que ficou parado. Sem tomar a canoa, sem entrar no rio, sem buscar a margem terceira.

Da prateleira dedicada à Literatura Espanhola, tirou um livro no qual se encontrava o poema que mais gostava em toda sua vida. Leu as palavras que tanto bem conhecia:

"Perdi-me muitas vezes pelo mar, como me perco..." As palavras de Garcia Lorca faziam com que se lembrasse de Lean, seu melhor amigo. Os livros, nas prateleiras, eram sua platéia. Seu público não o aplaudia, não compactuava com sua atitude infame e covarde. Os livros que ali estavam apontavam suas páginas para ele, recriminando-o; seus títulos olhavam-no fixamente, e suas palavras o insultavam.

As lágrimas eram o Corifeu daqueles que diziam: "Covarde! Não se abandona um amigo!" Deixou-se escorregar pela parede gelada do lugar, até cair no chão. Quedado, paralisado, pronto pra virar geléia.

De onde menos se poderia esperar: um espelho. Desses de mão, caído entre os livros. Estaria, por aquela biblioteca, Hermione Granger fugindo de algum basilisco? Não, não estava. E o próprio espelho, que para a bruxa servira de refúgio e socorro, para Mário servia de basilisco. Feria-o de morte. O que via nele não era agradável, ora medonho, ora acusador. Via-se a si próprio, via sua imagem. De um covarde. E por outro lado acusava-se com olhos malignos, petrificadores, assassinos.

Capítulo 9 - Abrindo o jogo - Mário

Eram meio dia e alguma coisa, estávamos nós dois, Mário e eu, sentados a uma mesinha de pedra no pátio da escola. Estava deserto. Naquela hora, o turno da manhã já tinha ido embora e o da tarde ainda não tinha entrado. Nós ficamos lá nem lembro o porquê. Mário tava falando umas besteiras sobre Gramática. Coitado. Não entendia nada de nada nesse assunto. Ele estava com medo de ficar reprovado por que sei lá o quê, e também porque a professora Márcia Leite não ia muito com a cara dele. Ele falou muita besteira, e meu pensamento voava dali e pra li ao mesmo tempo. Eu pensava em Mário, mas não nas idiotices que ele falava. Pensava nele, nos olhos, e no quanto eu queria vê-los apenas a distância de um centímetro dos meus, enquanto nossos lábios se amassem.

Pensava em seu coração, se ele um dia bateria por mim. Queria que esse dia fosse agora, queria que ele me amasse, que ele sentisse por mim apenas uma parte, 1/1.000.000 avos do que eu sentia por ele. Assim ele me amaria demais, de forma que não suportaria. Queria que fosse meu, de mais ninguém. Ninguém o amava como eu. Tenho certeza. Mas meu amor era feio. Minha forma de amar não protagonizava a novela perfeita. Não era bonita, e nem era abençoada na Igreja. Eu não podia amar, esse direito me havia sido roubado. Será que teria de morrer com aquilo preso na garganta?

As horas correm.
Eu não entendo porque o tempo passa.
Passa e passa.
E eu aqui, calado, mudo.
Inércia!
Quem passou cola em meus lábios?
Quem comeu minha língua?
O meu gato não a queria.
Como posso saber?
Nunca perguntei.
Idiota!
Pelos meus tornozelos,
Sinto passar a agonia
E vem discorrendo pelas minhas pernas,
Joelhos e cochas.
Fazendo os meus ossos tremerem.
Sinto-a na barriga,
Embrulhando-me o estômago.
O embrulho foi para o coração,
Lá virou aperto,
O que fez tremer o corpo.
Foi parar no cérebro,
E lá virou certeza.
Voltou ao chacra,
E lá ação.
Subiu a garganta,
Às pregas vocais,
Os lábios se abriram
E a língua dançou:
—"Euteamo."

"Quê?" Ele olhou pra mim.

"Eu te amo!" Fui firme em olhá-lo.

"Como assim? Você me ama?"

"Amo. E sei que não é normal, pra você..." virei me de costas, tinha vergonha de encará-lo. "Eu não entendo isso. Simplesmente amo você, amo demais e não posso parar. E nem quero. Sabe que às vezes até tenho vontade de chorar?! Sei que isso não é normal. É estranho um menino apaixonado por outro menino. Mas pra mim não é... O que me consola, é saber que o Cupido não escolhe suas vítimas; e ele me feriu de você. Por favor, me entenda..." Tomei coragem, não sei de onde a tirei, para olhá-lo. E ele... Ele não estava mais lá.

Eu estava sozinho, sozinho. Foi impossível conter as lágrimas. Elas eram teimosas: migraram dos meus olhos para o meu rosto e chão. Debrucei-me sobre a mesinha de pedra na minha frente, ela estava fria, minha alma estava fria; com o rosto enfiado entre os braços chorei, abafei meu choro, derramei minhas lágrimas.

Aquilo não era humano. Por mais que não me amasse, que me odiasse até, mas me ouvisse e tivesse a dignidade de me dizer não. Mas não era possível odiá-lo. O amor corria em minhas veias ainda, e coagulava. Ardia-me o peito em amor. Tudo o que eu queria era olhar nos olhos dele. Talvez se eu não tivesse sido tolo, ele teria ficado. Se eu não tivesse dado-lhe as costas, ele poderia estar me beijando. Se eu não tivesse lhe falado nada, ele estaria do meu lado, como bons amigos que somos. Ainda o somos depois deste falimento?

Eu queria vê-lo. Ver seus lábios, sentir seu cheiro, tocar seu braços, ouvir o ranger de seus dentes. Eu queria amá-lo. Por meu amor eu seria capaz de tudo, até de me humilhar novamente. Eu queria ser dele. Não queria que tivesse ido embora. Eu o queria ali, ao meu lado. Esse era o lugar dele. Eu queria ser dele, nem que fosse por apenas uma noite. Eu seria capaz de me rebaixar a tanto e de novo...

A sirene tocou, dentro de alguns minutos o turno da tarde estaria, em peso, no pátio. Eu não quis compartilhar minha cara inchada com eles, levantei-me, fui-me de lá.

* * *

Em sua cama, Lean chorou o choro dos justos, dos tristes e dos desesperados. Queria matar seu travesseiro, companheiro de todas as horas. Poderia matar alguém. Extravasar, que fosse. Poderia matar-se a si mesmo. Acabar de vez com sua vida. Negar-se o direito de viver, pois a vida lhe foi dada e ele não soube vivê-la. Ainda a merecia?

Lean mudou de posição na cama e seus olhos foram direto a uma fotografia na qual Mário o beijava no rosto, e Lean olhava para a máquina sorrindo. Respondida a pergunta? Sim, merecia! Merecia a vida como uma criança que sai do ventre de sua mãe. Tinha o que buscar, tinha um porquê de viver. Tinha Mário. Não, não tinha nada. Nada, nada. Amou o travesseiro. Acreditou ser ele, Mário o amamdo. E chorou mais.